Veículo: AASP
Autor(es): Antonio Carlos Amendola, Fernando Brandão Whitaker, Mário Luiz Oliveira da Costa, Roberto Timoner e Rogerio Mollica.
Especialistas¹ consultados pelo BAASP alertam que o discurso de transparência, simplificação e justiça fiscal não encontra integral amparo nos textos propostos para a reforma tributária, aumentando a insegurança jurídica sobre como serão interpretados pelos fiscos federal, estaduais e municipais, assim como pelo Judiciário, se aprovados sem ajustes. A análise se baseia no comparativo das PECs nº 45 e nº 110 e do PL nº 3.887 em discussão no Congresso Nacional.
1. Há convergência entre as propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso?
Existem semelhanças e distinções entre as três propostas. É possível, analisando o que está em discussão, unificar de dois a nove tributos, assim como apenas alguns deles, eventualmente, em grupos distintos. Também o período de transição entre a sistemática atual e a nova que vier a ser implementada, com ou sem coexistência provisória de ambos os regimes, poderá ser reduzido ou majorado, entre 6 meses e excessivos 50 anos. Independentemente das PECs nº 45 e nº 110 e do PL nº 3.887, vários temas poderão avançar no Congresso Nacional em se tratando de reformas tributárias. O próprio governo federal já esclareceu que apresentará outros projetos de lei. Dentre os pontos, podem-se citar alterações nas sistemáticas de tributação ou não tributação de lucros e dividendos, grandes fortunas, patrimônio, renda, folha de salários e economia digital.
2. É fato que as propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso, se aprovadas, impactarão mais fortemente os prestadores de serviços?
Sim, porque, em todas essas propostas, os substitutos de alguns dos tributos por eles atualmente apurados teriam alíquotas majoradas. Como o principal custo dos prestadores de serviços diz respeito à mão de obra, que não daria direito a crédito em nenhum desses novos sistemas propostos, disto resultaria relevante aumento da carga tributária a eles imposta, podendo mais do que dobrar para muitos deles. Há quem diga que os custos dos novos tributos seriam transferidos aos adquirentes dos serviços – consumidores finais –, que os preços praticados poderiam ser repactuados em razão de os adquirentes terem direito a crédito e que a maioria das pessoas físicas adquirentes de serviços, sem direito a crédito, seriam “ricas”. São argumentos simplistas e distantes da realidade, na medida em que desconsideram diversos fatores como, dentre outros: a inevitável majoração dos preços praticados, o custo financeiro decorrente do descasamento entre o desembolso e a recuperação do respectivo montante, a impossibilidade de recuperação por não contribuintes em geral e as dificuldades para renegociação do preço para fins de futuros pagamentos atinentes a contratos anteriormente celebrados. Também não procede o argumento de que apenas pessoas ricas seriam tomadoras de serviços, como se a classe média ou mesmo pessoas mais pobres não se esforçassem para colocar seus filhos em escolas particulares, pagar médicos particulares, assumir elevados custos com transportes, contratar advogados, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos e outros. Tudo em razão da manifesta insuficiência dos serviços públicos gratuitos. Não parece adequado com preceitos de justiça tributária e capacidade contributiva aplicar a mesma alíquota a contribuintes com proporções entre créditos e débitos tão distintas. Causa estranheza, aliás, que o próprio PL nº 3.887 proponha alíquota reduzida (5,8%, em vez de 12%, proposta para os demais contribuintes) para instituições financeiras, sob a justificativa de que a CBS deva ser “apurada de forma diferenciada em razão de especificidades que dificultam a tributação do valor adicionado em cada operação”, sem, no entanto, fazer a mesma distinção para prestadores de serviços, que também possuem especificidades que assim justificariam e são grandes geradores de emprego, assim como responsáveis por mais de 60% do PIB nacional. Não seria mais razoável admitir, ao menos, a coexistência entre os regimes cumulativo com alíquota menor e não cumulativo com alíquota maior, à opção anual de cada contribuinte?
3. Quais são os principais obstáculos a serem superados?
A principal dificuldade e o maior risco são a falta de uma pauta clara e completa, fundamentada em estudos técnicos, tanto jurídicos quanto econômicos, que tivessem sido objeto de amplos debates pela sociedade. As distorções existentes no sistema atual exigem ampla reforma tanto no âmbito constitucional quanto no infraconstitucional, envolvendo diversos tributos. Não é necessário fazer todas as reformas de uma só vez, mas é preciso estabelecer previamente tudo o que se pretende implementar, a melhor forma de fazê-lo, as correlações entre cada alteração e o cronograma previsto. Não se pode alterar o sistema tributário de forma assistemática e desordenada, ou, ainda, sem antes avaliar e definir, muito bem, a política fiscal que se pretenda adotar e os efeitos de todas as mudanças no que respeita tanto aos contribuintes quanto aos diversos entes tributantes envolvidos. Devem ser considerados os impactos setoriais, até para que aqueles mais relevantes sejam minimizados com contrapartidas ou transição mais longa e, os menos relevantes, possam ocorrer mais cedo. Além da análise econômica, é preciso avaliar se, no aspecto jurídico, existem flancos que possam invalidar as alterações ou mesmo provocar questionamentos, na contramão da pretendida redução da litigiosidade. A complexidade envolvida não admite soluções simplistas; antes, exige exame abrangente de todo o sistema. Há quem defenda, por exemplo, a volta da tributação de lucros e dividendos, sem considerar os vários benefícios resultantes da isenção em vigor há quase 25 anos, acompanhada que foi da majoração do imposto de renda das pessoas jurídicas, da redução dos custos de fiscalização de milhares de pessoas físicas para apuração de eventual prática de distribuição disfarçada de lucros e da otimização da arrecadação com o desincentivo à informalidade e os controles mais efetivos das pessoas jurídicas, maior geração de empregos etc. O retorno ao passado para atender pedidos demagógicos, desprovidos de fundamento econômico sólido, não traria mais desvantagens do que vantagens?! A instituição do IBS também carece de exames econômicos e jurídicos, inclusive simulando-os e comparando-os com dados econômicos reais. Não há base suficiente para uma conclusão segura, também por exemplo, de que a adoção de alíquota única seria preferível ao quanto adotado na maior parte dos países modernos, com poucas alíquotas aplicadas de acordo com as peculiaridades dos setores onerados. Não bastasse tamanha complexidade, muitos desconfiam que possa haver, novamente, aumento da carga tributária. A desconfiança não é injustificada. Tantos foram os avanços e alterações feitos pela Constituição Federal de 1988, inclusive em relação ao Sistema Tributário Nacional, que o art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) determinou expressamente fosse feita uma “revisão constitucional”, após cinco anos de sua promulgação. Em 1992, juristas, advogados e magistrados propuseram alterações. Veio o ano de 1993 e, para surpresa e descrédito de todos, não ocorreu a revisão constitucional. Foi a primeira oportunidade perdida para a realização de uma reforma tributária. E, na sua ausência, nosso sistema foi se deteriorando, com alterações desvinculadas e desconectadas umas das outras (quando não inconciliáveis), tal qual verdadeira colcha de retalhos. Tudo isso, somado à sempre crescente sanha arrecadatória dos entes tributantes e à errática jurisprudência de nossos tribunais, em especial sobre os limites para instituição e cobrança de contribuições em geral, levou-nos à situação atual.
Vivemos uma verdadeira babel tributária na qual ninguém mais se entende, tendo que conviver com milhares de normas e interpretações as mais distintas, em ambiente de constante desconfiança e abusos de toda sorte e de todos os lados. Temos um dos sistemas tributários mais complexos e custosos do mundo, a propiciar elevado volume de equívocos, intencionais ou não, tanto dos contribuintes quanto das fiscalizações.
Outro exemplo de descrédito e de oportunidade perdida diz respeito à suposta não cumulatividade do PIS e da Cofins. Duas contribuições que incidiam sobre a receita, cumulativamente, à alíquota somada de 3,65%. Em razão dos reiterados alertas dos empresários para os prejuízos decorrentes da cumulatividade, autorizou-se, no início deste século XXI, que o legislador elegesse setores que pudessem usufruir da sistemática não cumulativa. Em contrapartida, sob a justificativa de que a não cumulatividade não poderia resultar em perda de arrecadação, a alíquota conjunta das duas contribuições foi praticamente triplicada, de 3,65% para 9,65%, enquanto alguns setores de atividade econômica que teriam poucos créditos foram mantidos na sistemática cumulativa. Todavia, ainda assim a Receita Federal jamais admitiu a não cumulatividade plena. O tema é objeto de milhares de processos judiciais e administrativos e ainda aguarda definição no âmbito do Supremo Tribunal Federal quase vinte anos depois, o que demonstra quão prejudicial pode ser uma reforma que gere novas polêmicas.
4. Mas essas incertezas não seriam superadas se aprovadas as novas propostas?
Pergunta-se: mas a não cumulatividade plena não havia sido assegurada e, por tal razão, majorada a alíquota já no início do século? Agora, ao menos, a redação apresentada assegura que a não cumulatividade será realmente plena? Resposta à primeira indagação: sim; à segunda: não! Foram apresentados estudos técnicos exaustivos a comprovar a necessidade de mais essa majoração de alíquota? Surpresa: não! A PEC nº 45, de outro lado, é “vendida” à opinião pública como se assegurasse um novo tributo plena e integralmente não cumulativo. Ocorre que a redação (“será não cumulativo, compensando-se o imposto devido em cada operação com aquele incidente nas etapas anteriores”) repete, quase na literalidade, a da Constituição Federal em relação ao IPI (“será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”). Só que a não cumulatividade do IPI não é plena e integral, tendo a jurisprudência há muito definido que há direito a crédito apenas em relação a matéria-prima, produtos intermediários e material de embalagem diretamente utilizados na fabricação do bem onerado pelo imposto.
Repetir (na PEC nº 45) a mesma redação (da Constituição sobre o IPI) e alegar que asseguraria créditos integrais para todo e qualquer bem adquirido é um engodo.
O discurso de transparência, simplificação e justiça fiscal não encontra integral amparo nos textos propostos, aumentando a insegurança jurídica sobre como serão interpretados pelos fiscos federal, estaduais e municipais, assim como pelo Judiciário, se aprovados sem ajustes.
5. Quais alterações no Sistema Tributário atual seriam mais urgentes e factíveis?
Antes de mais nada, é imprescindível reduzir o tamanho do Estado. O Estado brasileiro gasta muito e gasta mal. Enquanto não forem ajustados os gastos, não se saberá quanto realmente precisa ser arrecadado e não se poderá sequer estimar com alguma razoabilidade a carga tributária ideal do novo sistema que, obviamente, deverá ser reduzida tanto quanto possível. Feito isso, deve ser estabelecida a política fiscal pretendida com transparência, amplo debate, estudos com base em dados reais, sempre objetivando, realmente, assegurar mais clareza, simplicidade, eficiência e segurança jurídica, de modo a de fato reduzir a litigiosidade. O norte deve ser reduzir tributos e regressividade, com foco em justiça tributária e incentivo à formalidade, à atividade econômica e consequentes geração de emprego e renda. Da mesma forma, não se pode descuidar dos interesses arrecadatórios da União, Estados e municípios, menos ainda de suas autonomias, em respeito ao pacto federativo.
RESUMO DAS TRÊS PROPOSTAS
• PEC nº 45: substituir IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com alíquota única para todos os contribuintes.
• PEC nº 110: substituir IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS pelo IBS, admitindo alíquotas diferenciadas para determinados bens e serviços, desde que uniformes em todo o território nacional. Texto substitutivo propõe o “IBS dual” – um, resultante da fusão de IPI, PIS e Cofins, e o outro, de ICMS e ISS.
• PL nº 3.887: unificar PIS e Cofins, criando a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), à alíquota de 12% sobre a receita bruta e com direito a créditos correspondentes ao valor da mesma contribuição destacado nas notas fiscais de aquisição de bens e serviços.
Urgente, igualmente, a redução e a adequada regulação de taxas e contribuições, com limites que assegurem não possam ser desnaturadas e utilizadas como verdadeiros impostos. Quanto à tributação do consumo, a proposta de um IBS dual com poucas alíquotas e possibilidade de isenção parece moderna e adequada, de modo a respeitar as peculiaridades e distinções dos vários setores da atividade econômica. Há, também, diversas medidas que podem ser adotadas de pronto e com relativa facilidade, para incentivar mais rapidamente a retomada da atividade econômica, tais como: simplificação e racionalização das obrigações acessórias e respectivas penalidades por sua não apresentação ou apresentação incompleta; redução de multas de mora e punitivas, que atualmente podem atingir 300% do valor do tributo exigido de forma confiscatória; extinção da certidão negativa de débitos (CND), desnecessária em um sistema moderno em que os entes tributantes possuem a relação dos devedores e podem cobrá-los prontamente; e redução dos prazos de decadência e prescrição, que se justificavam à vista das dificuldades da década de 1960, não mais. Não menos urgente e importante, ainda, simplificar ao máximo os tributos e procedimentos atuais. Afinal, sejam quais forem as reformas aprovadas e os novos tributos porventura instituídos, continuaremos convivendo ao menos com a maioria dos atuais, alguns, por algum tempo, concomitantemente com seus substitutos. Como se vê, há muito o que fazer, mas é preciso fazer bem feito, com muita calma, amplos estudos, intensos debates e integral programação, tudo com honestidade, clareza e transparência. Nada do que ora se sugere é utopia; são propostas factíveis. Basta todos quererem e trabalharem para que sejam implementadas a tempo e modo adequados.
O Brasil não merece – e não suportará – um arremedo de reforma tributária.
(1) Antonio Carlos Amendola, Fernando Brandão Whitaker, Mário Luiz Oliveira da Costa, Roberto Timoner e Rogerio Mollica.