Veículo: ConJur
Autor(es): Drs. Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski
Em breve deverá ser votada perante o Senado Federal a PEC dos precatórios (23/2021), que, entre outros, prevê: 1) moratória no pagamento dos precatórios federais em decorrência da instituição de limite orçamentário — “teto” — para o adimplemento dessa dívida pública até 2037, o que, na prática, posterga, indefinidamente, o pagamento de R$ 44,6 bilhões dos R$ 89,1 bilhões que estavam previstos no orçamento para o pagamento dessas dívidas [1]; 2) compensação de eventuais dívidas inscritas em nome do credor com o valor desses precatórios; 3) mudança no regime de correção dessas dívidas; e 4) aplicação retroativa dessas regras.
Os debates em torno dessa PEC têm demonstrado curiosa situação de menosprezo à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso se aplica não só à discussão pública que ocorre perante o Congresso Nacional, mas também ao que tem sido rotineiramente veiculado na imprensa, em geral, a respeito do assunto. Alude-se à viabilidade orçamentária do novo programa de renda (Auxílio Brasil), ao teto de gastos, à securitização das dívidas de entes federativos subnacionais, à possibilidade de conceder-se aumento a servidores públicos, às emendas de relator, dentre outras. Esquece-se, porém, que, antes de tudo isso é preciso debater, com seriedade, a viabilidade constitucional de mais uma moratória no pagamento de precatórios.
Afinal, que segurança jurídica e institucional existe em um país no qual o Parlamento não respeita as posições da Corte Suprema? Como, em uma República com repartição dos poderes, é possível que o último que possui a palavra em matéria constitucional seja simplesmente ignorado?
Não se discute a ampla possibilidade de diálogo institucional entre os Poderes da República em questões constitucionais (Victor, 2015:2015). De fato, “argumentos de política” (Dworkin, 1978: 184) [2], retratados por meio dos representantes eleitos do povo, podem, eventualmente, superar tecnicismos jurídicos emanados de experts jurídicos, juízes e tribunais (Waldron, 2004: 290) [3]. Porém, mesmo em tais situações, parece-nos imprescindível que a jurisprudência seja seriamente considerada na arena política e que a decisão tomada não contrarie frontalmente “argumentos de princípio” (idem) delimitados pelo Tribunal Constitucional, o que, no Brasil, significa a impossibilidade de se contrariar decisões já estabelecidas pelo STF à luz das cláusulas pétreas constitucionais. Trata-se de um imperativo da repartição dos poderes (artigos 2º e 60, §4º, III, da CF) e da competência atribuída constitucionalmente ao Supremo Tribunal Federal para a “guarda da Constituição” (artigo 102, caput, da CF).
O caso dos precatórios é paradigmático tanto do desprezo à jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto da existência de “argumentos de princípio” que impedem o Parlamento de superar os precedentes. Isso porque a PEC 23/21 contém medidas similares às anteriormente já declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Vejamos:
Moratória no pagamento de precatórios
A PEC 23/21 pretende inserir no ADCT o artigo 107-A, segundo o qual “até o fim do prazo de que trata o art. 106 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fica estabelecido, para cada exercício, limite para alocação na proposta orçamentária das despesas com pagamentos em virtude de sentença judiciária (…)equivalente ao valor da despesa paga no exercício de 2016 corrigido na forma do §1º do artigo 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Ao apreciar medidas similares de criação de regimes de vinculação de percentuais fixos de receitas para o adimplemento das dívidas judiciais de estados e municípios (cf. EC 62/09) ou de parcelamento de precatórios, inclusive os federais (cf. EC 30/00), o Supremo Tribunal Federal as declarou inconstitucionais por ofenderem a separação dos poderes, a duração razoável do processo, o acesso à Justiça e afetividade da jurisdição, o direito adquirido, a coisa julgada, dentre outros direitos e garantias individuais:
“Ambos os modelos de moratória violam, a mais não poder, a duração razoável do processo (CF, artigo 5º, LXXVIII). Permitir que precatórios judiciais sejam saldados em até 15 anos (…) é medida que ultrapassa qualquer senso de razoabilidade.(…) compromete ainda o amplo acesso à justiça e a plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV) (…) A moratória instituída pela EC nº 62/09 ultraja ainda a Separação de Poderes (CF, artigo 2º), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI)” (ADI 4.357 [4]).
“Ao admitir a liquidação ‘em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos’ dos ‘precatórios pendentes na data de promulgação’ da emenda, violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário afronta ‘a separação dos Poderes’ e ‘os direitos e garantias individuais’. (…)“ (Ementa da MC na ADI 2356, Tribunal Pleno, DJ 19/05/2011 [5]).
Contingenciamento de recursos orçamentários
Ao apreciar o regime especial de pagamento de precatórios destinado a estados e municípios, previsto no artigo 97, §14, do ADCT, o STF declarou a inconstitucionalidade do contingenciamento de recursos orçamentários para o pagamento dessas dívidas, medida similar à prevista no supramencionado artigo 107-A do ADCT previsto na PEC 23/21. De acordo com a Corte Constitucional, a imposição de um “teto” anual para o pagamento das dívidas decorrentes dos ilícitos cometidos pelo Estado subverte o acesso à jurisdição, a efetividade jurisdicional e a separação dos poderes e, o que é mais grave, limita a própria ideia de Estado de Direito, já que supõe que o poder público apenas responda em parte pelas suas ilicitudes à medida em que o orçamento lhe permita:
“Na forma do artigo 97, §14, do ADCT, não há horizonte temporal pré-definido para o fim desse modelo, que perdurará enquanto os estoques de precatórios pendentes de pagamento forem superiores ao valor dos recursos vinculados à sua satisfação. (…) A previsão de contingenciamento de recursos orçamentários para o pagamento de precatórios também subverte o amplo acesso à justiça e a plena efetividade da prestação jurisdicional (CF, artigo 5º, XXXV). Com efeito, beira as raias do absurdo jurídico que a autoridade pública no Brasil, independentemente do número de ilícitos que cometa, somente responda até certo limite, traduzido em percentuais de receita corrente líquida (…) grotesca espécie de imunidade parcial do Estado à ordem jurídica, em franca colisão com a ideia de Estado de Direito, que clama pela sujeição completa e irrestrita do poder ao império da lei (rule of law)” (ADI 4.357, p. 114 do voto ministro Luiz Fux).
Criação de passivo — até então inexistente — de precatórios para a União
Atualmente a União Federal não possui estoque de precatórios a pagar. Porém, se o artigo 107-A do ADCT, proposto na PEC 23/2021, for aprovado, haverá a criação imediata de um estoque de R$ 44,6 bilhões apenas em decorrência do previsto no orçamento para o ano de 2022. Em 2037, essa dívida terá ultrapassado a casa dos R$ 4 trilhões [6]. Atento a essa situação de fato das dívidas federais, o STF, ao apreciar pedido feito em ação que questionava os índices de atualização dos precatórios, determinou fosse mantida a forma de pagamento então adotada para os precatórios federais precisamente para evitar novos litígios e a criação de situação inconstitucional:
“A União e suas entidades estão atualmente em dia com suas obrigações, de sorte que aplicar um índice de correção já declarado inconstitucional pelo STF terá o único condão de criar um passivo de precatórios e RPVs que hoje não existe na esfera federal, alimentando o ciclo de litigância judicial”. (AC 3764, ministro Luiz Fux, 26/03/2015 [7])
Compensação forçada de precatórios com débitos em nome do credor
A PEC 23/21 prevê a inclusão de um §9º ao artigo 100 da Constituição, segundo o qual o “valor correspondente aos eventuais débitos inscritos em dívida ativa contra o credor do requisitório e seus substituídos deverá ser depositado à conta do juízo responsável pela ação de cobrança, que decidirá pelo seu destino definitivo”.
Trata-se de mecanismo similar ao previsto no antigo §9º do mesmo dispositivo, que, incluído pela EC 62/09, fora declarado inconstitucional pelo STF ao fundamento de que “esse tipo unilateral e automático de compensação (…) embaraça a efetividade da jurisdição e desrespeita a coisa julgada (…) mesmo que veiculada por emenda à Constituição, também importa contratura no princípio da separação dos Poderes. No caso, em desfavor do Poder Judiciário. Como ainda se contrapõe àquele traço ou àquela nota que, integrativa da proporcionalidade” (página 11/12 do voto do ministro Ayres Britto na ADI 4357).
Correção monetária inferior à inflação e juros distintos dos usados pelo Estado
O artigo 3º da PEC 23/21 estabelece que “nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – Selic, acumulado mensalmente”.
Ao apreciar o §12 do artigo 100 da CF, incluído pela EC 62/09, o STF declarou que a adoção da mesma taxa de juros para todos os precatórios “independentemente da sua natureza” viola a isonomia e, relativamente à correção monetária, julgou inconstitucional a adoção de taxas que não reflitam “autênticos índices de preços”, como é o caso da taxa SELIC:
“Violação à coisa julgada e à separação dos Poderes. (…) de nada adianta o direito reconhecido pelo Judiciário ser corretamente atualizado até a data de expedição do precatório, se, entre a expedição do requisitório e seu efetivo pagamento, pode ele (o direito) sofrer depreciação de 10, 20, 40%. (…) incidência mutilada da correção monetária, isto é, qualquer tentativa de aplicá-la a partir de um percentualizado redutor, caracteriza fraude à Constituição.” (página 19 do voto do ministro Ayres Britto na ADI 4.357).
“Os índices de correção monetária devem consubstanciar autênticos índices de preços” (RE 870.947, relator(a): Luiz Fuz, DJE 20/11/2017 [8]).
Aplicação retroativa da PEC para precatórios já expedidos
O artigo 5º da PEC 23/2021 estabelece que “as alterações relativas ao regime de pagamento dos precatórios se aplicam a todos os requisitórios já expedidos ou inscritos, inclusive no orçamento fiscal e da seguridade social do exercício de 2022”.
O STF já declarou a inconstitucionalidade de normas similares que previram a retroação de novos regimes jurídicos para precatórios já expedidos, a exemplo daquelas inseridas no contexto das ECs 30/00 e 62/09:
“Lei disciplinadora da submissão de crédito ao sistema de execução via precatório possui natureza material e processual, sendo inaplicável a situação jurídica constituída em data que a anteceda” (RE 729.107, ministro Marco Aurélio, DJe 15/9/2020 [9]).
“A moratória instituída pela EC nº 62/09 ultraja ainda a Separação de Poderes (CF, artigo 2º), o direito adquirido e a coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI), no mínimo quanto aos precatórios já expedidos na data de sua promulgação. (…)” (ADI 4.357, p. 116, voto ministro Luiz Fux)
“‘Quanto aos ‘precatórios pendentes’, a deliberação do Congresso Nacional veio a privar da imediata eficácia a decisão judicial, com o cumprimento do precatório já pendente de pagamento, atentando contra a independência do Poder Judiciário” (ADI 2.3627 Doc. 05).
Como se vê, o Supremo Tribunal Federal já se debruçou exaustivamente, com base nas cláusulas pétreas da Constituição, sobre normas absolutamente similares às que alguns parlamentares insistem em reincluir no ordenamento jurídico. Ao ignorar olimpicamente esse fato e a jurisprudência do Tribunal Constitucional, corre-se o risco de o Parlamento criar situação de enorme fragilidade institucional e insegurança jurídica.
[2] De acordo com Dworkin, argumentos de política, assim como a definição de políticas públicas, as denominadas policies estariam sob a competência dos representantes do povo por intermédio do Poder Legislativo, ao passo que as questões de princípio, calcadas em argumentos de princípio, estariam a cargo dos Juízes e, em última instância, do Tribunal Constitucional.
[3] De acordo com Waldron, no âmbito de sociedades plurais, também há discordância entre as pessoas sobre questões de princípios, o que denomina de “desacordo moral razoável”, de sorte que o Parlamento igualmente seria o local apropriado para deliberar a respeito dessas questões. Assim, ao contrário do que sustenta Dworkin, para Waldron não haveria uma primazia do judicial review acerca de questões de princípio.
[4] (http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=262782784&ext=.pdf).
[5] (https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=623127).
[6] https://www.conjur.com.br/2021-nov-10/opiniao-pec-232021-efeitos-financas-federais.
[7] (https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15322153266&ext=.pdf).
[8] (https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313307256&ext=.pdf).
[9] (https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344404542&ext=.pdf).