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Artigos - 06/01/22

O Supremo Tribunal Federal e a área tributária em 2021

Veículo: ConJur
Autor(es): Drs. Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski

Em 2021 o STF apreciou 110 processos relacionados a tributos. Entre as repercussões gerais apreciadas, 96% dos julgamentos ocorreram sob a sistemática virtual [1]. Em 63% dos casos com declaração de inconstitucionalidade, houve discussão a respeito da atribuição de efeitos prospectivos às decisões da corte, o que inspira atenção. Mesmo que se admita a constitucionalidade da modulação de efeitos em matéria tributária — o que é discutível —, é preciso que haja um racional único na adoção dessa técnica de julgamento para que não sejam criadas situações de injustiça, desigualdade e insegurança jurídica.

Homem de terno e gravata Descrição gerada automaticamenteEm fevereiro, julgou-se constitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da CPRB (RE 1.187.264), entendimento aplicado a caso análogo, meses depois, quanto à inclusão do ISS na base de cálculo daquela contribuição (RE 1.285.845). Os julgamentos representaram modificação inesperada de entendimento tanto do STF quanto do STJ, esta última proferida na sistemática repetitiva, ocasionando insegurança jurídica e ofensa à isonomia. Isso porque havia razoável expectativa de que a mesma posição adotada em relação à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins (RE 574.706) fosse aplicada à CPRB. Porém, o voto do ministro Alexandre de Moraes desqualificou o conceito constitucional de receita bruta ao assumir pudesse ser ele um para PIS/Cofins (com a exclusão de tributos de sua base) e outro para CPRB (com a inclusão de tributos). Mesmo se fosse admissível a fundamentação adotada pela corrente vencedora, de que a CPRB, por ser facultativa, admitiria a inclusão do ICMS por ser um “benefício fiscal”, então a corte deveria ter fixado a exclusão do imposto ao menos em relação ao período no qual a CPRB era obrigatória, o que, apesar de ter sido suscitado em embargos, não foi examinado. Do mesmo modo, não houve decisão fundamentada do pleito para que a decisão tivesse eficácia prospectiva, em razão da inesperada alteração de jurisprudência repetitiva do STJ, dos Tribunais Regionais Federais e do próprio STF na matéria. Trata-se de fundamento que havia sido acolhido pela corte ao modular os efeitos da decisão do PIS/Cofins sobre ICMS, em favor da Fazenda, o que, por medida de isonomia, deveria ter sido considerado quando em jogo a segurança jurídica dos contribuintes. Porém, o pedido de modulação foi rejeitado ao argumento genérico de que não haveria pressuposto para tanto.

No mesmo mês, assentou-se a invalidade do diferencial de alíquotas do ICMS quando ausente lei complementar: “A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais” (RE 1.287.019 e ADI 5469). O tribunal modulou os efeitos de sua decisão para que ela tivesse eficácia apenas a partir de 2022, viabilizando ao Congresso a aprovação de lei complementar sobre o tema, “ressalvadas da modulação as ações judiciais em curso”. Ao rejeitar embargos de declaração aviados pelos secretários de Fazenda na ADI 5.469, o tribunal assentou que a ressalva às ações em curso significaria “as ações judiciais propostas até a data do referido julgamento”, o que é incompatível com o não acolhimento do recurso e à orientação reiterada da corte no sentido de atribuir como data de corte o “dia da publicação da ata do julgamento”.

Em março, ao abordar a incidência do ITCMD sobre heranças e doações no exterior, o STF assentou ser “vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no artigo 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional” (RE 851.108, j. 1º/3/2021). A decisão andou bem ante a impossibilidade de cobrança da exação sem a edição da necessária lei complementar, porém causou perplexidade quanto aos impactos da modulação de efeitos realizada pela corte. De fato, o tribunal modulou “os efeitos da decisão (…) a contar da publicação do acórdão em questão, ressalvando as ações judiciais pendentes de conclusão até o mesmo momento, nas quais se discuta: (1) a qual estado o contribuinte deve efetuar o pagamento do ITCMD, considerando a ocorrência de bitributação; e (2) a validade da cobrança desse imposto, não tendo sido pago anteriormente”. Por haver dúvida quanto à cumulatividade dos itens 1 e 2 acima, a corte acolheu aclaratórios para esclarecer que “o caráter dos citados itens é alternativo, e não cumulativo”. Porém, a modulação contida no item 2 aniquilou qualquer efeito prático das ações em curso, ajuizadas antes da conclusão do julgamento, que questionavam a constitucionalidade da tributação e, em função disso, pediam a restituição dos valores recolhidos indevidamente. Além disso, gerou margem de dúvida para que o Fisco pudesse interpretar que o depósito judicial equivaleria ao pagamento, o que também afastaria a eficácia da decisão nessa hipótese. Como já salientamos [2], sem a reparação do direito violado, o pilar da Justiça cede, assim como desabam, quase como em um efeito “dominó”, os princípios a ele conectados, como é o caso da isonomia, boa-fé objetiva, segurança jurídica, livre concorrência, solidariedade, responsabilidade do Estado, propriedade etc., sendo esse o caso de quem questionou o imposto, pediu a restituição, na via própria e dentro do período estipulado pelo STF, porém nada colherá da demanda individual em função da modulação havida.

Em abril, decidiu-se pela constitucionalidade da contribuição ao Incra, ao fundamento de que “foi recepcionado pela Constituição de 1988 na categoria de contribuição de intervenção no domínio econômico, pois objetiva atender os encargos da União decorrentes das atividades relacionadas à promoção da reforma agrária” (ministro Dias Toffoli, RE 630.898). A decisão seguiu a mudança de entendimento da Corte que, em 2020, assentou que artigo 149, §2º, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal contém bases de cálculo exemplificativas (RE 603.624) e não taxativas conforme antes decidido (RE 559.937).

Em maio, finalizou-se o julgamento da “tese do século” segundo a qual o ICMS deve ser excluído da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins. O STF rejeitou os declaratórios para esclarecer que o ICMS a ser excluído das bases de cálculo é o destacado na nota e não o recolhido na escrita fiscal e modulou os efeitos da decisão para produzir efeitos a partir de 15/3/2017, ressalvadas as ações ajuizadas até a referida data. Tanto os votos vencedores e vencidos proferidos pelos ministros no julgamento inicial quanto o conteúdo das decisões das instâncias ordinárias demonstravam que a tese submetida à apreciação do STF dizia respeito à exclusão do ICMS destacado, o que afastaria a possibilidade lógica de haver omissão ou obscuridade no acórdão a esse respeito, conforme assentou o tribunal ao rejeitar os embargos. Por outro lado, não andou bem o STF ao modular os efeitos da decisão. No contexto da jurisdição constitucional, a atribuição de eficácia prospectiva decorre, em nosso sentir, de um juízo de impossibilidade e não, propriamente, de ponderação. No caso, além de a decisão do STF ter seguido o padrão jurisprudencial estabelecido desde 24/8/2006 (RE 240.785), não havia situação de fato a justificar a adoção de efeitos prospectivos, eis que a previsão de perda vinha sendo contingenciada, desde 2007, no orçamento.

Também em maio o STF validou a incidência de imposto de renda sobre depósitos bancários de origem não comprovada (RE 855.649). Julgou-se que o artigo 42, da Lei 9.430/1996 não ampliou o fato gerador do tributo, “ao contrário, trouxe apenas a possibilidade de se impor a exação quando o contribuinte, embora intimado, não conseguir comprovar a origem de seus rendimentos” (voto do ministro Alexandre de Moraes). Nos filiamos à posição vencida do ministro Marco Aurélio, segundo o qual “é equivocada a pretensão de extrair da norma presunção em favor do fisco”, legitimando a inversão do ônus probatório “sem aprofundamento investigatório quanto a haver renda consumida ou outros elementos fáticos vinculados à movimentação dos recursos”. No mesmo mês, o STF julgou que “a inadimplência do usuário não afasta a incidência ou a exigibilidade do ICMS sobre serviços de telecomunicações” (RE 1.003.758). O julgamento se baseou em fundamento fixado pelo próprio STF, em 2011 (RE 586.482), razão por que, embora possamos discordar do mérito julgado, houve respeito e consideração aos fundamentos teóricos utilizados nos precedentes da corte.

Em junho, o STF declarou a inconstitucionalidade da vedação de créditos de PIS e Cofins nas aquisições de insumos recicláveis (RE 607.109). O julgamento propiciou o prestígio ao princípio constitucional da isonomia em matéria tributária, bem como das finalidades que a Constituição Federal almeja no tocante à proteção ao meio ambiente e valorização do trabalho humano.

Em agosto, o ministro Gilmar Mendes teceu importantes esclarecimentos na apreciação dos aclaratórios opostos contra acórdão que, no contexto da chamada “guerra fiscal”, julgou não violar o princípio constitucional da não cumulatividade o estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo estado de destino em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo estado de origem sem autorização do Confaz (RE 628.075). O ministro esclareceu que os créditos de ICMS referentes aos benefícios da LC 160/2017 não podem ser questionados, uma vez que seja editada legislação específica atinente à remissão ou reinstituição. Quanto ao direito ao creditamento, o ministro deixou claro que “o crédito do ICMS na etapa seguinte deve ser equivalente ao valor efetivamente cobrado” e não se confunde com o imposto “pago” na operação.

No mesmo mês foi iniciado o julgamento virtual do RE 592.616, que trata da exclusão do ISS das bases de cálculo do PIS e da Cofins. Quando o placar apontava empate (4 a 4) e havia razoável expectativa de que fosse reafirmada a mesma posição adotada pelo tribunal quando da exclusão do ICMS da base de cálculo das mesmas contribuições, o julgamento foi suspenso em função do destaque formulado pelo ministro Luiz Fux. Em função disso, o julgamento será reiniciado, no Plenário físico, com a desconsideração do voto proferido pelo antigo relator, ministro Celso de Mello, em razão do Despacho 1.683.788/21, assinado pelo ministro Luiz Fux [3], o que causou certa estranheza na comunidade jurídica ante a possibilidade de que meros pedidos de destaque modifiquem resultados já consolidados ou razoavelmente esperados à luz dos precedentes. Foi o que ocorreu no processo que discute a constitucionalidade da inclusão dos créditos presumidos de ICMS nas bases de cálculo do PIS e da Cofins (RE 835.818) o qual teve o julgamento virtual suspenso em virtude do pedido de destaque pelo ministro Gilmar Mendes, mesmo após o registro de voto dos 11 ministros e a formação de resultado então favorável aos contribuintes.

Em setembro, o STF assentou a não incidência do IRPJ e da CSLL sobre a taxa Selic em ação de repetição de indébito (RE 1063187). Houve reiteração do entendimento exarado pelo tribunal em março (RE 855.091) [4], relativamente ao percebido por pessoas físicas, no sentido de que os juros de mora estão fora do campo de incidência do IRPJ e da CSLL, “pois visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas, decréscimos, não implicando aumento de patrimônio do credor” (ministro Dias Toffoli). A posição do STF se sobrepõe à decisão do STJ que havia decidido “quanto aos juros incidentes na repetição do indébito tributário, inobstante a constatação de se tratar de juros moratórios, se encontram dentro da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, dada sua natureza de lucros cessantes, compondo o lucro operacional da empresa” (REsp 1.138.695, j. 31/5/2013, ministro Mauro Campbell Marques).

Em novembro, o STF definiu que, relativamente ao ICMS, “discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços” (RE 714139). O tribunal entendeu que o desvirtuamento da técnica da seletividade “não se compatibiliza com os fundamentos e objetivos contidos no texto constitucional” (ministro Marco Aurélio), porém, em dezembro, formou-se maioria para modular os efeitos da decisão apenas a partir de 2024, ressalvadas as ações ajuizadas até o início do julgamento. A atribuição de eficácia muitos anos após o julgamento gera estímulo ao estado para a edição de normas contrárias à Constituição e prejudica os consumidores que há anos têm pago indevidamente o imposto e, em razão da modulação, continuarão a fazê-lo até 2024, o que é irrazoável. Ao firmar o início do julgamento, 5/2/21, como data de corte para a preservação dos efeitos das ações em curso, o STF ainda divergiu de seus julgados que, em homenagem à publicidade e segurança jurídica, costumam adotar a data da publicação da ata de julgamento para tanto.

O STF ainda declarou constitucional a majoração da alíquota da contribuição ao SAT por meio de ato infralegal (RE 677.725 e ADI 4.397), ao fundamento de que o Decreto nº 3.048/99 apenas delimitou a progressividade na forma de coeficiente a ser multiplicado pelas alíquotas básicas já fixadas expressamente em lei (Lei nº 10.666/03). A flexibilização do princípio da legalidade estrita tributária não é compatível com a segurança que se espera nas relações jurídico-tributárias.

Em dezembro, o STF, na linha do voto do ministro Roberto Barroso, assentou ser “constitucional a lei estadual ou distrital que, com amparo em convênio do Confaz, conceda remissão de créditos de ICMS oriundos de benefícios fiscais anteriormente julgados inconstitucionais” (RE 851.421/DF). Andou muito bem o tribunal ao manter as medidas adotadas em consenso pelos estados como forma de minimizar os efeitos da chamada “guerra fiscal” de ICMS, conforme temos defendido nos últimos anos [5].

O tribunal declarou, ainda, a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal nº 87/96, de sorte a fixar a impossibilidade de incidência de ICMS no mero deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte (ADC 49). Ficou pendente para 2022 a definição da modulação de efeitos, o que parece recomendável na hipótese, considerando que a decisão gerou incertezas [6] no recolhimento do ICMS, na manutenção dos créditos de ICMS já aproveitados, além de dúvidas a respeito de seus impactos sobre as ações em curso.

Como se viu, foi farta a produção tributária do STF em 2021 e as questões relacionadas à modulação dos efeitos das decisões, centrais na maioria dos julgados, foram algumas vezes definidas a partir de balizas questionáveis.


[1] https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=listas_rg.

[2] https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-modulacao-efeitos-juizo-impossibilidade.

[3] https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/10/sei-stf-1683788-despacho.pdf.

[4] Tese fixada: “Não incide imposto de renda sobre os juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função“.

[5] https://www.conjur.com.br/2017-mar-23/complexidade-guerra-fiscal-icms-exige-saida-organizada
https://www.conjur.com.br/2017-mar-23/complexidade-guerra-fiscal-icms-exige-saida-organizada-ii
https://www.conjur.com.br/2017-fev-01/constitucional-lei-perdoa-creditos-tributarios-autorizacao
AFONSO, José Roberto Rodrigues, FUCK, Luciano Felício; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Constitucionalidade das convalidações de incentivos fiscais acordadas entre os estados. Revista Opinião Jurídica, v. 14, n. 18, 2016, Unichristus – Qualis B.2 – 2016: 229/248.

[6] https://www.conjur.com.br/2021-mai-13/hugo-funaro-adc-49-cria-perplexidades-recolhimento-icms
https://www.jota.info/coberturas-especiais/contencioso-tributario/decisao-do-stf-sobre-icms-em-estabelecimentos-do-mesmo-dono-gera-incertezas-14062021.

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