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Artigos - 18/08/20

O projeto da CBS precisa ser aperfeiçoado

Veículo: Conjur
Autor(es): Hugo Funaro, Douglas Guidini Odorizzi e Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho

O governo federal apresentou o primeiro bloco de sua proposta de reforma tributária. Trata-se do Projeto de Lei (PL) nº 3887/20, cujo propósito é criar a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), em substituição aos atuais PIS e Cofins.

Os debates em torno da proposta têm sido focados, principalmente, em constitucionalidade, conveniência e efeitos econômicos [1], notadamente o aumento brutal da carga tributária sobre os serviços [2]. Essas questões são fundamentais, porém, não nos ocuparemos delas neste trabalho.

Nosso objetivo é contribuir para o aperfeiçoamento do projeto, durante a tramitação no Congresso Nacional. Nesse sentido, vale registrar que a substituição dos atuais PIS/Cofins e PIS/Cofins importação pela CBS, aliada ao cálculo por fora desta última e à eliminação dos atuais entraves à apropriação de créditos, seria um importante avanço na direção da racionalização, da transparência e da segurança do microssistema da contribuição social sobre a receita/importação. Entretanto, trata-se de medida paliativa, que não dispensa o debate sobre a reforma do sistema tributário, inclusive no plano constitucional.

1) Adequação do nome da contribuição ao seu fato gerador

O projeto institui contribuição social “sobre operações com bens e serviços”, o que poderia ser considerado inconstitucional, já que somente por lei complementar pode a União instituir contribuição social sobre materialidade não prevista nos incisos do artigo 195 da Constituição Federal, nos termos do §4º do referido dispositivo, bem como da jurisprudência do STF [3].

Entretanto, a análise do fato gerador e da base de cálculo da contribuição demonstra que, na realidade, a tributação recai sobre as receitas decorrentes de atividades integrantes do objeto social da empresa (ou entidade equiparada), incluindo acréscimos de multas e encargos (DL nº 1598/77, artigo 12) [4], bem como sobre “a importação de bens e serviços do exterior”.

Como “a natureza jurídica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la (…) a denominação e demais características formais adotadas pela lei” (CTN, artigo 4º, I), pode-se sustentar a validade formal do PL 3887/20, por instituir contribuição previdenciária sobre “a receita ou o faturamento” e “o importador de bens e serviços do exterior”, como autorizado pelos incisos I, “b” e IV, do artigo 195 da Constituição.

De todo modo, ainda que se admita tratar-se de contribuição similar aos atuais PIS/Cofins, seria recomendável ajustar a ementa e o artigo 1º do PL nº 3887/20 para refletir a real materialidade do tributo e mitigar discussões quanto ao tema.

2) Incidência sobre a receita bruta

Em comparação com os atuais PIS e Cofins, a base imponível da CBS seria menos abrangente: receita bruta das atividades-fim (ou objeto social) da pessoa jurídica, nos termos do artigo 12 do DL 1.598/1977, e não a totalidade das receitas por ela auferidas como consta do artigo 1º, §1º, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003. Com isso, eliminam-se litígios envolvendo receitas de natureza financeira (inclusive JCPs), indenizatória, ganhos de capital e outras que não se incluam no rol de atividades desenvolvidas habitualmente pela pessoa jurídica.

Contudo, para pessoas jurídicas cujo objeto social abranja o investimento em outras sociedades (holdings, bancos etc.), passaria a haver CBS (12% ou 5,8% no caso de instituições financeiras) sobre lucros/dividendos e resultados decorrentes do método de equivalência patrimonial (MEP), diferentemente do que ocorre na atualidade. Seria razoável, portanto, a inclusão de normas que exonerem tais receitas CBS, evitando-se distorções econômicas e elevação da carga tributária.

Com efeito, a desoneração dos lucros e dividendos se justifica por terem origem em receitas que já seriam tributadas pela CBS na órbita da pessoa jurídica investida. A tributação na distribuição de lucros e dividendos geraria duplicação do ônus da CBS, tornando-a cumulativa e desestimulando investimentos. Por outro lado, se houvesse direito de crédito, este só serviria para compensar o débito do mesmo valor, sendo preferível desonerar a receita em questão.

Quanto ao MEP, sua exclusão é de rigor, por duas razões. Primeiro, por se tratar de mera fórmula de avaliação de investimentos. Segundo, por ser formado por lucros da investida [5]. De toda forma, se as variações positivas decorrentes de MEP forem tributadas, os resultados negativos deveriam gerar créditos da CBS.

Por fim, deve ser definido o tratamento a ser dado aos JCPs, que, hoje, são tributados mediante alíquotas uniformes nos diferentes regimes de PIS/Cofins e passariam a gozar de alíquotas distintas, a depender do tipo de sociedade envolvida: 12% (holdings) ou 5,8% (bancos), em violação ao princípio da isonomia (CF, artigo 150, II). De fato, não haveria justificativa razoável para que os sócios de certa pessoa jurídica ficassem sujeitos a cargas tributárias distintas sobre receitas idênticas (JCPs), pelo simples fato de explorarem atividades econômicas diferentes.

3) Regime monofásico e operações com sujeitos passivos equiparados

Propõe-se a adoção do regime de incidência monofásica da CBS para combustíveis e cigarros/cigarrilhas, como autorizado pelo artigo 149, §4º, da CF. A medida se justifica em face da maior propensão desses mercados a desequilíbrios concorrenciais decorrentes de procedimentos sonegatórios (falsificação, contrabando, subfaturamento).

Provavelmente com o intuito de coibir procedimentos elisivos, foram equiparados a importador e a produtor, respectivamente, o encomendante de mercadoria estrangeira e a pessoa jurídica vinculada ao fabricante ou importador (assim como o comerciante de álcool). Isso, para evitar a “interposição de terceiros” com o objetivo de “quebrar” a cadeia da contribuição e, assim, reduzir o valor da receita tributável.

Ocorre que, em relação aos combustíveis, a medida se afigura inócua, pois são cobrados valores fixos (ad rem) por quantidade de produto, de modo que tanto faz a contribuição recair sobre o produtor/importador ou empresa equiparada: o valor da CBS será sempre o mesmo. Assim, parece inadequado submeter o “equiparado” ao cumprimento de obrigações tributárias que poderiam ficar restritas aos produtores/importadores, seguindo as diretrizes de simplificação que norteiam o projeto.

Com relação aos cigarros, o cálculo da CBS possui uma parcela fixa (ad rem) e outra móvel (ad valorem), o que torna a apuração complexa e suscetível a “subfaturamento”, justificando a equiparação de terceiros a produtor ou importador. O mais adequado, porém, seria estabelecer apenas valores fixos, de modo a eliminar a possibilidade de manipulação do valor da CBS, a exemplo do que ocorre com os combustíveis. Em se optando, porém, por manter a parcela variável, as equiparações de terceiros deveriam restringir-se somente aos cigarros/cigarrilhas.

Em qualquer caso, é necessário disciplinar a apuração da CBS quando haja a participação, na cadeia circulatória, de pessoa equiparada a industrial ou importador. O projeto não deixa claro se, nesses casos, o pagamento da contribuição competirá unicamente ao equiparado (desobrigando-se o produtor/importador original), ou se haverá dupla incidência da contribuição (no produtor/importador e no equiparado), hipótese em que deverá ser assegurado ao equiparado o direito a crédito da CBS, para viabilizar a não-cumulatividade.

4) Simples Nacional: há lacuna no projeto

Consta do PL que o Comitê Gestor do Simples disciplinará a forma como a pessoa jurídica optante “efetuará, em documento fiscal, o destaque da CBS efetivamente incidente sobre a operação, exclusivamente para fins de creditamento pela pessoa jurídica adquirente”. Isso sugere que o PIS e a Cofins seriam substituídos pela CBS também no regime simplificado, gerando crédito equivalente ao valor exato dessa contribuição.

Contudo, o regramento do Simples exige lei complementar (CF, artigo 146, III, “d”), não podendo o legislador ordinário simplesmente “revogar” o PIS/Cofins e determinar sua automática substituição pela CBS no tocante àquele sistema, pois, nele, a cobrança do novo tributo depende de lei complementar. De outro lado, a cobrança de PIS/Cofins no regime simplificado também não poderia permanecer, já que as leis instituidoras de tais contribuições seriam revogadas.

Em suma, embora a exposição de motivos afirme que “apenas o montante que já seria recolhido conforme o regime de apuração simplificado… mantém-se sendo exigido”, não há qualquer norma no projeto que assegure a cobrança da CBS com a mesma carga tributária atualmente aplicada ao PIS/Cofins, o que exigiria a alteração da LC 123/2001 (SIMPLES).

5) CBS na reimportação de itens nacionais/nacionalizados

O PL equipara bens nacionais/nacionalizados aos estrangeiros, sujeitando-os à CBS-importação quando de seu retorno ao país, o que inclui equipamentos e afins adquiridos no mercado interno e exportados por empresas nacionais de engenharia, para execução de obras no exterior.

Todavia, pela leitura conjunta do artigo 195, IV, com o artigo 149, §2º, II e §4º, contribuições não incidem sobre quaisquer itens, apenas sobre a “produtos estrangeiros”, ainda que a Constituição se refira à CBS como contribuição “do importador de bens ou serviços do exterior”. Aliás, interpretação diversa levaria ao absurdo de a CBS incidir no retorno de bens nacionais ou nacionalizados ao país, quando o mesmo não ocorre com o imposto de importação (STF) [6].

6) Ilegitimidade da responsabilidade imputada às plataformas digitais e aos fornecedores estrangeiros

O PLS imputa responsabilidade tributária às plataformas digitais, assim entendida “qualquer pessoa jurídica que que atue como intermediária entre fornecedores e adquirentes nas operações de venda de bens e serviços de forma não presencial, inclusive na comercialização realizada por meios eletrônicos”.

Em princípio, a atribuição de tal responsabilidade seria possível em relação à CBS devida sobre a receita auferida pelos fornecedores de produtos e serviços comercializados por intermédio de plataforma digital no mercado interno, por haver vinculação entre esta e o fato gerador do tributo (receita decorrente da operação intermediada), nos termos do artigo 124, II c/c artigo 128 do CTN.

É de constitucionalidade duvidosa, porém, a hipótese de responsabilização prevista no artigo 5º do projeto, cuja aplicação está condicionada à falta de emissão de documento fiscal eletrônico pelo vendedor. Neste caso, a sujeição passiva da plataforma é subsidiária, na medida em que decorre do descumprimento de obrigação acessória por terceiro (emissão de nota fiscal). Assim, mesmo que o fornecedor pague a CBS (a despeito de não emitir nota fiscal), subsistiria a obrigação da plataforma digital de recolher o mesmo tributo, permitindo bis in idem vedado pela Constituição.

Além disso, o CTN só admite a transferência de responsabilidade a terceiros pelo cumprimento de obrigação principal, jamais em virtude do descumprimento de obrigação acessória, como pretende o projeto (CTN, arts. 113, 121, 122, 124 e 128 a 134). Ainda, é desarrazoado impor à plataforma digital a obrigação de fiscalizar a emissão de notas fiscais pelos terceiros que usam seus serviços e aplicar-lhe “penalidade” pelo descumprimento de tal obrigação acessória equivalente ao valor da CBS. O tributo não pode ser sanção de ato ilícito (CTN, artigo 3º).

Com relação aos bens importados por meios digitais, o projeto imputa responsabilidade solidária ao importador e à plataforma localizada no exterior pelo recolhimento da CBS-importação. Já para os serviços importados por pessoas físicas, a responsabilidade seria exclusiva dos fornecedores e plataformas digitais localizados no exterior, sendo-lhes exigido cadastro junto à Receita Federal. Acontece que a imputação de obrigações tributárias principais ou acessórias a pessoas residentes ou domiciliadas no exterior pode esbarrar em problemas de enforcement, já que as autoridades brasileiras não teriam jurisdição para assegurar o seu cumprimento, na ausência de tratado com o país do fornecedor/plataforma.

Assim, para evitar desequilíbrios econômicos e concorrenciais resultantes da possível ineficácia da sistemática de recolhimento da CBS, notadamente em relação aos serviços adquiridos no exterior por meio digital, melhor seria que o tributo fosse recolhido por pessoas residentes no país, sem prejuízo atribuir-se a condição de substituto tributário a plataformas digitais ou instituições financeiras brasileiras responsáveis pelo pagamento de transações internacionais.

7) Multa desproporcional

As multas previstas no PL, em geral, são compatíveis com as aplicáveis aos tributos federais. Entretanto, para o destaque de CBS nas situações em que se presume a apropriação de créditos indevidos pelo adquirente, está prevista multa de 150%, cuja constitucionalidade pende de apreciação pelo STF (RE 736.090 – RG). Diante disso, seria recomendável limitar a multa a 100% da CBS, como admitido pelo STF (ADI 551/RJ).

De outro lado, se a CBS for compensada com outros tributos antes de encerrado o trimestre-calendário, haveria multa de 80% do crédito utilizado. Ocorre que a situação descrita equivaleria à mera antecipação do exercício de direito legalmente admitido, podendo gerar, quando muito, a postergação do pagamento do tributo “indevidamente” compensado. Como o pagamento a destempo de tributos está sujeito à multa de mora de 20%, seria razoável aplicar a mesma penalidade no caso de compensação “antecipada” dos créditos de CBS. Até porque a de multa de 80% praticamente esvazia a substância econômica do crédito, beirando o confisco.

Portanto, recomenda-se a redução das penalidades indicadas, em atenção ao princípio da proporcionalidade da pena, de modo a evitar contencioso sobre a questão.

Conclusão

São esses, em síntese, os principais pontos do PL nº 3887/20, que entendemos devam ser aperfeiçoados para tornar a CBS mais simples, justa e com menor potencial de litigiosidade, possibilitando a melhoria do ambiente de negócios.

[1] https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/texto-da-reforma-tributaria-resolveantigos- problemas-mas-pode-criar-novos-litigios-avaliam-tributaristas/, acesso em 3/8/2020.
[2] www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/deja-vu-no-pis-cofins-x-cbs-27072020, acesso em 3/8/2020.
[3] RE 166.772-9/RS – Rel. Minº Marco Aurélio – DJ: 16/12/1994; ADI 1102/DF – Rel. Minº Maurício Corrêa – DJU: 17/11/1995; ADI 1.103/DF – Rel. Minº Maurício Corrêa – DJ: 25/4/1997; RE 595.838 – Rel. Minº Dias Tóffoli – DJe: 8/10/2014.
[4] “Artigo 12. A receita bruta compreende:
I – o produto da venda de bens nas operações de conta própria;
II – o preço da prestação de serviços em geral;
III – o resultado auferido nas operações de conta alheia; e
IV – as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos incisos I a III”.
[5] Cf. PEDREIRA, Bulhões. Imposto Sobre a Renda – Pessoas Jurídicas, Justec, 1979, vol. I, ps. 278/279.
[6] ARE 1013567 – Rel. Minº Marco Aurélio – DJe: 31/01/2019.

Hugo Funaro é advogado tributarista integrante do escritório Dias de Souza Advogados Associados.
Douglas Guidini Odorizzi é advogado tributarista integrante do escritório Dias de Souza Advogados Associados.
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado tributarista integrante do escritório Dias de Souza Advogados Associados.