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Artigos - 18/05/05

Mário Luiz Oliveira da Costa – Lei de Falências: a Recuperação Judicial poderá não sair do papel

Veículo: Conjur
Autor(es): Mário Luiz Oliveira da Costa

A Lei nº 11.101/2005, que entrará em vigor no próximo mês de junho, trouxe inúmeras inovações, dentre as quais a introdução, em nosso sistema jurídico, do instituto da recuperação judicial, cujos avanços em relação à combalida concordata preventiva são inegáveis.

 

A clara intenção do legislador foi a de melhor viabilizar a recuperação das empresas em dificuldades financeiras, de modo a tentar evitar, mais eficazmente, o mal maior da falência. Nos termos do artigo 47 da referida lei, “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

 

Corre-se o risco, contudo, de o instituto da recuperação judicial não sair do papel.

 

Impõe a Lei nº 11.101/2005, em seus artigos 57 e 58, como uma das condições para a concessão da recuperação judicial, exigência de que o devedor regularize integralmente a sua situação fiscal, apresentando certidões negativas (ou positivas com efeitos de negativas) de débitos tributários (no mesmo sentido, o art. 191-A do CTN, na redação da LC 118/2005). A novidade dificulta sobremaneira a adoção da recuperação judicial em comparação com a antiga concordata, em que, nas raras vezes em que se exigia a apresentação de certidão negativa de débitos fiscais, tal se dava apenas ao final do processo. A justificativa para a exigência de CND no início do processo de recuperação judicial (logo após a apresentação do plano de recuperação aprovado pelos credores), ao que se saiba, seria a convicção de que somente se justifique a tentativa de recuperação judicial de empresas que tenham efetiva capacidade econômica para, ainda que a longo prazo, quitar suas dívidas, com condições de ao menos parcelar os seus débitos fiscais.

 

Considerando que, por óbvio, qualquer empresa que pretenda se socorrer da recuperação judicial certamente terá expressivo passivo fiscal, encontra-se em tramitação, no Congresso Nacional, projeto de lei regulando as condições de parcelamento dos créditos tributários dos devedores que se encontrem nesta situação. Trata-se do PLS nº 245/2004, de autoria do Senador Fernando Bezerra, com substitutivo do Senador Tasso Jereissati, o qual foi aprovado em 12 de abril último pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), devendo ser objeto de nova votação, em turno suplementar, na próxima reunião daquela Comissão.

 

Ocorre que, enquanto o projeto inicial do Senador Fernando Bezerra já implicava alguns riscos à plena eficácia do novel instituto, a prevalecer o substitutivo do Senador Tasso Jereissati estará ele fadado ao insucesso.

 

A questão mais grave diz respeito à tentativa, constante do substitutivo, de restaurar determinação que já fora corretamente afastada pelo Congresso quando da promulgação da lei de falências, no sentido de que, não sendo apresentada a CND, deva ser decretada a falência da empresa.

 

A exorbitância e a desproporcionalidade de tal penalidade são manifestas. O simples fato de a empresa em recuperação judicial não conseguir a emissão de certidão negativa de débitos não significa, em absoluto, a impossibilidade de sua recuperação (que seria a única justificativa válida para a decretação da falência).

 

Por primeiro, é público e notório que mesmo as empresas com sólido patrimônio e sem qualquer crise econômico-financeira têm enfrentado, atualmente, sérias dificuldades para a obtenção de certidões negativas, pelas mais diversas razões (tais como falhas de sistema, erro de preenchimento de DARF, compensações não cadastradas pela Receita Federal, suspensão de exigibilidade do crédito tributário ignorada pela Receita e/ou pela Procuradoria da Fazenda Nacional, débitos atingidos por decadência ou prescrição ainda pendentes nos sistemas do Fisco, etc).

 

Portanto, a não obtenção de CND pode decorrer – e, em geral, decorre – de variadas situações não relacionadas com a capacidade econômica da empresa ou com o seu nível de adimplência fiscal.

 

De outro lado, chega a ser ingênua a idéia de que, simplesmente facultando-se o parcelamento mais longo dos débitos que impeçam a emissão da CND, estaria resolvido o problema.

 

Não se pode presumir que todas as pendências que obstem a emissão da CND refiram-se a valores efetivamente devidos pelos contribuintes. Além das situações antes mencionadas, que se repetem a cada dia e injustamente dificultam a emissão de CND em vários casos, não seria adequado obrigar o contribuinte a parcelar, por exemplo, determinada exigência fiscal que, mesmo sem a suspensão de sua exigibilidade, fosse objeto de medida judicial ainda em curso. Afinal, se a legitimidade do crédito tributário encontra-se sub judice, não se trata de débito definitivo, podendo vir a ser cancelado pela decisão judicial final pendente no feito. Obrigar a inclusão de tal crédito tributário no parcelamento (como decorre tanto do projeto original, quanto do substitutivo) implicará o agravamento da situação econômico-financeira da empresa, ao invés do necessário auxílio à sua recuperação, forçando o pagamento de valores que poderiam vir a ser declarados indevidos pelo Poder Judiciário e afetando negativamente seu fluxo de caixa em momento tão delicado.

 

Aliás, no que respeita aos créditos tributários que sejam objeto de processos judiciais em curso, ainda que não se encontrem com a exigibilidade suspensa, deveria ser assegurada, em qualquer hipótese, a expedição de certidão positiva com efeitos de negativa. Tal providência seria de extrema valia para todas as empresas (e não apenas para aquelas que pretendessem recuperação judicial), sem que disto possa resultar prejuízo ao fisco. Se a pendência de um recurso administrativo possibilita a emissão da certidão positiva com efeitos de negativa, nada mais adequado do que assim também se assegurar na pendência de recurso judicial (sem prejuízo do direito do fisco executar o crédito tributário cuja exigibilidade não esteja suspensa).

 

Se tanto não bastasse, sequer se cogita de estabelecer critérios realmente especiais para os parcelamentos de devedores em recuperação judicial, que pudessem auxiliá-los de forma mais eficaz. Exige-se que a totalidade dos débitos em aberto seja parcelada (o que não se verifica nos parcelamentos comuns), com o único benefício de prazos um pouco mais elásticos: sete anos para as microempresas e empresas de pequeno porte e seis anos para as demais. Ora, considerando que os parcelamentos comuns de débitos de qualquer natureza para com a Fazenda Nacional, na atualidade, podem ser de até cinco anos (conforme art. 24 da Lei nº 10.637/2002), o projeto de lei de que se cuida concede apenas um ano a mais (ou dois anos, no caso de micro ou pequenas empresas) para os devedores em recuperação judicial.

 

Parece óbvio que apenas um ano a mais de prazo para a quitação de seu passivo fiscal federal é um auxílio muito pequeno, quase irrelevante, para os devedores que necessitem de recuperação judicial.

 

Deveria a nova lei fixar mecanismos que realmente possibilitassem o pagamento dos créditos tributários líquidos e certos, quiçá com a autorização para que as condições específicas dos parcelamentos fiscais fossem determinadas, de forma realmente exeqüível, no âmbito da própria recuperação judicial, na qual seria possível considerar a específica situação global de cada devedor e sua capacidade de honrar a totalidade dos compromissos assumidos (observados, por exemplo, os limites que seriam fixados na lei quanto aos valores proporcionais mínimos e máximos de cada parcela em comparação com a receita mensal auferida, prazo máximo para a quitação do parcelamento superior a dez anos, etc.).

 

Mais ainda, deveria a nova lei fixar as hipóteses em que o juiz poderia flexibilizar a exigência da CND, possibilitando, por exemplo, que, quando comprovado que os débitos que impedissem a emissão do documento não comprometeriam o cumprimento do plano de recuperação judicial, fosse sucessivamente prorrogado o prazo para a sua apresentação, tendo como limite apenas o final do processo. Deveria, ainda, determinar que o contribuinte fosse obrigado a incluir no parcelamento não a totalidade dos seus débitos, mas apenas aqueles necessários para viabilizar a sua recuperação, facultando-lhe excluir, em especial, aqueles que se encontrassem sub judice, ainda que sem suspensão da exigibilidade, hipótese em que, pura e simplesmente, continuaria sujeito à execução fiscal. Determinaria a lei que, no que respeita aos débitos sub judice, tivesse a certidão positiva, para todos os fins de direito, efeitos de negativa.

 

Nada disso, contudo, foi considerado quer no projeto inicial do Senador Fernando Bezerra, quer no substitutivo do Senador Tasso Jereissati. Deste modo, não apenas deixa-se de aproveitar excelente oportunidade para fazer os ajustes necessários ao fortalecimento do instituto da recuperação judicial, como – o que é pior – corre-se o risco de ser ele ainda mais engessado, a ponto de tornar-se impraticável.

 

Em suma, a depender do texto final que vier a ser promulgado, as empresas que pleitearem a recuperação judicial poderão ser antecipadamente condenadas, em sua quase totalidade, à falência. Está nas mãos do Congresso Nacional possibilitar que a recuperação judicial se torne um instrumento realmente eficaz na superação das dificuldades econômico-financeiras enfrentadas pelas empresas, não o seu algoz.

 

Mário Luiz Oliveira da Costa – artigo publicado no site “Consultor Jurídico” (www.conjur.com.br) em 18/05/2005