Veículo: Repertório IOB de jurisprudência, n.10, 2º quis. Maio/2000
Autor(es): Mário Luiz Oliveira da Costa
O presente estudo restringe-se ao exame da legitimidade das cobranças realizadas pelo IBAMA para fins de expedição e renovação das Licenças para Uso da Configuração de Veículos ou Motor, a que se sujeitam os fabricantes e importadores de motores e veículos automotores, especialmente no que pertine à alteração dos critérios de apuração dos montantes exigidos, verificada com a edição da Lei nº 9.960/2.000.
1. Histórico Legislativo
Nos termos do disposto no art. 24, VI da Constituição Federal, têm a União, os Estados e o Distrito Federal competência concorrente para legislar sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição.
Com fundamento em referido dispositivo constitucional, foi editada a Lei nº 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, indicando em seu artigo 9o os instrumentos de referida Política, dentre os quais o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (inciso IV).
De outro lado, dispõe a Lei nº 8.723/93 sobre a redução de emissão de poluentes por veículos automotores, determinando o seu art. 5o que somente possam ser comercializados os modelos de veículos automotores que possuam a LCVM, emitida pelo IBAMA.
No âmbito regulamentar, a Resolução nº 18/86 do CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente – atribui à SEMA – Secretaria do Meio Ambiente – a competência para emitir, para fins de controle da poluição do ar, a LCVM, enquanto a Portaria nº 167/97 do IBAMA indica os procedimentos atinentes à expedição desta licença.
Com a edição da Lei nº 9.960/2.000 (resultante da MP 2.015-1, de 30/12/99), foram estabelecidos “os preços dos serviços e produtos” do IBAMA e, ainda, instituída a Taxa de Fiscalização Ambiental – TFA, que seria devida pelas pessoas físicas ou jurídicas obrigadas ao registro no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais (e cuja exigibilidade resta suspensa em razão da medida liminar concedida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 29/03/2000, nos autos da ADIn nº 2.178-8[1]).
Dentre os vários itens relacionados no Anexo VII da Lei nº 9.960/2.000, encontra-se a LCVM, que se diferencia da TFA na medida em que esta seria cobrada genericamente de todas as pessoas físicas ou jurídicas antes referidas, em razão das atividades por elas desenvolvidas ensejarem a fiscalização genérica pelo IBAMA, ao passo que aquela diz respeito à atividade específica de licenciamento dos produtos (veículos e/ou motores) que atendam às normas de controle de emissão de poluentes.
2. O fato gerador e a base de cálculo das taxas
Conforme previsto no art. 145, II da Constituição Federal, a taxa é espécie de tributo, devida em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.
Assim, a lei somente poderá eleger os fatos supra referidos como hipóteses de incidência (fatos geradores) de taxas, determinando o parágrafo 2o do artigo 145 da Constituição, outrossim, que elas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.
Embora doutrinariamente já não exista hoje o apego de outrora à mera função contraprestacional das taxas (principalmente em se tratando de taxas cobradas em razão do exercício do poder de polícia), seu princípio informador, conforme observado por Geraldo Ataliba[2], permanece sendo o da retributividade. O contribuinte, nelas, retribui pecuniariamente o serviço público ou as diligências que levam ao ato de polícia que o alcança, pagando a exação devida.
Por isso, para Roque Antonio Carrazza[3], “em nome da segurança jurídica não é aceitável que, só porque a pessoa pública realizou uma atuação estatal, está autorizada a cobrar uma taxa no valor que quiser e de quem quiser (…). Pelo contrário, só poderá exigir a taxa daquela pessoa diretamente alcançada pela atuação estatal e desde que o tributo tenha por base de cálculo o custo da atuação”.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não obstante invariavelmente proclamasse, no passado, a necessidade de o valor cobrado a título de taxa estar sempre vinculado ao dispêndio da Administração, tanto no exercício do poder de polícia como na colocação, à disposição dos contribuintes, de serviços públicos específicos e divisíveis[4], tem se inclinado, ultimamente, no sentido de que a fixação da respectiva taxa deva se dar, ao menos, de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionalidade[5](o que se justifica, principalmente, em se considerando que em determinadas hipóteses o custo da atuação estatal possa ser de difícil apuração).
3. Licença autoriza a cobrança de taxa
Nos termos do artigo 78 do Código Tributário Nacional, “considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, (…) à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”. O exercício do poder de polícia se dá de forma regular “quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”, conforme disposto no parágrafo único do referido art. 78.
De fato, o poder de polícia, como dizia Geraldo Ataliba[6], expressa-se em atos de agentes públicos que “desempenham exames, vistorias, perícias, verificações, avaliações, cálculos, estimativas, confrontos e outros trabalhos como condição ou preparo do ato propriamente de polícia, consistente em autorizar, licenciar, homologar, permitir ou negar, denegar, proibir, etc. Entende-se que estas atividades se constituem na hipótese de incidência da taxa; elas é que justificam a sua exigência, da pessoa interessada nas conclusões ou no resultado de tais atos (este resultado, ou conclusões, sim, eminentemente expressivos do poder de polícia)” (original não grifado).
Assim, tratando-se no caso de licença cuja obrigatoriedade decorre de lei, o procedimento de expedição da LCVM caracteriza regular exercício do poder de polícia pela autoridade administrativa, justificando a cobrança da respectiva taxa.
Do quanto até aqui exposto, verifica-se que a exigência de submissão ao prévio licenciamento, pelo IBAMA, dos modelos de motores/veículos a serem comercializados encontra amparo legal e constitucional, possibilitando igualmente a regular cobrança de taxa pelo exercício deste poder de polícia.
Cumpre examinar, assim, se os critérios de cobrança adotados pelo IBAMA a legitimam pois, não obstante fixados em lei, devem conformar-se aos ditames constitucionais aplicáveis.
4. A exigência mensal não caracteriza taxa
Até 31/12/99, cobrava o IBAMA R$ 250,00 pela expedição (anual) de cada LCVM.
Com a edição da Lei nº 9.960/2.000, foram fixados os “preços dos serviços e produtos do IBAMA”, constando dentre os vários itens relacionados nos Anexos àquela lei a forma para o cálculo da LCVM: “R$ 266,00 + N x R$ 1,00”, sendo N igual ao número de veículos comercializados no mercado interno (Anexo VII, item III).
A obtenção de cada LCVM, portanto, sujeita o contribuinte a exigência de dupla natureza: deve recolher em favor do IBAMA R$ 266,00 quando da expedição da licença e, ainda, proceder ao pagamento de valores mensais equivalentes ao número de veículos comercializados no mês anterior, multiplicado por R$ 1,00.
A cobrança de R$ 266,00 no ato de expedição da LCVM legitima-se como taxa na medida em que, como visto, a emissão de licença autoriza a exigência deste tributo em razão do regular exercício do poder de polícia, desde que previsto em lei e que o respectivo valor corresponda ao custo da atuação estatal ou, ao menos, tenha sido fixado de forma razoável, o que parece restar atendido no caso.
Já no que tange aos valores devidos mensalmente, na proporção dos veículos comercializados, não guardam qualquer relação quer com o regular exercício do poder de polícia (procedimentos administrativos para a expedição da licença), quer com o custo efetivo da atuação estatal.
Realmente, a própria Lei nº 8.723/93 determina, em seu artigo 5º, que a LCVM seja emitida pelo IBAMA em relação aos modelos de veículos, e não por unidade produzida, como indicado na fórmula de cálculo determinada no Anexo à Lei nº 6.938/81 (introduzido pela Lei nº 9.960/2000).
Assim, no que diz respeito exclusivamente à LCVM, o poder de polícia é exercido apenas quando da sua efetiva expedição, para o que a autoridade administrativa deve conferir se os resultados dos exames do modelo objeto do pedido de licença atendem a todos os requisitos legais, especialmente quanto aos níveis máximos de emissão de poluentes.
Quanto ao custo da atividade fiscalizadora, é igualmente manifesto que a cobrança mensal não guarda com ele qualquer relação, pois o procedimento da autoridade administrativa para fins de expedição da LCVM será exatamente o mesmo, independentemente de o contribuinte vir a proceder à comercialização de milhares de veículos ou de apenas uma única unidade (ou mesmo nenhuma) !
Disto resulta que a exigência de recolhimentos mensais desatende ao princípio informador da retributividade, inicialmente referido, razão pela qual não se caracteriza como taxa, mas sim como imposto[7].
Portanto, a exigência mensal, atrelada ao número de veículos comercializados, não atende aos requisitos do artigo 145, II da Constituição Federal, caracterizando-se como verdadeiro “imposto disfarçado” instituído em desconformidade com os requisitos exigidos no art. 154, I da CF-88, do que resulta a sua flagrante inconstitucionalidade.
5. Violação aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e moralidade administrativa
Ainda que a exigência mensal pudesse se caracterizar como taxa, haveria no caso violação à proporcionalidade, à razoabilidade e à moralidade administrativa.
Com efeito, a desproporcionalidade em relação à atividade fiscalizadora correspondente torna-se patente pelo simples fato, já referido, de a LCVM ser emitida anualmente em relação ao modelo de veículo e/ou motor submetido a exame (e não a cada veículo efetivamente produzido), mesmo porque, aprovado o modelo, caso venha a ser detectada a produção de alguma unidade em desconformidade com os critérios objeto da aprovação, ficará a empresa produtora sujeita à imposição das severas sanções previstas na legislação aplicável (como multas, cancelamento da LCVM, suspensão das atividades, etc).
Note-se, ainda, que todos os custos incorridos para o exame dos modelos, elaboração de laudos pela CETESB (por delegação do IBAMA), etc, já são suportados pelas empresas solicitantes, de modo que o valor cobrado deve se ater exclusivamente aos custos administrativos para a mera expedição da licença.
Inexiste, portanto, qualquer justificativa para que a empresa continue arcando, mensalmente, com uma “taxa complementar” desvinculada de novo procedimento de fiscalização/licenciamento, do que resulta a violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Pelas mesmas razões, resta igualmente desatendido no caso, ainda, o princípio constitucional da moralidade (art. 37, caput da CF-88), que deve permear as relações entre a Administração e os contribuintes.
Deste modo, por todo o exposto, a exigência dos valores mensais correspondentes ao número de veículos comercializados, relativamente à LCVM, padece de insanável vício de inconstitucionalidade, contrariando o disposto no art. 145, II da Constituição Federal, eis que não se coaduna com a natureza de taxa em razão do exercício do poder de polícia, além de desatender aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ao da moralidade administrativa.
Mário Luiz Oliveira da Costa – artigo publicado na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo nº 5 (janeiro-junho/2000, Ed. RT, p. 214) e no Repertório IOB de Jurisprudência nº 10/2000 (2ª quinz. maio/2000 – 1/14753)
[1] Não obstante tenha inicialmente constado de referida decisão a suspensão da eficácia do artigo 8º da Lei nº 9.960/2000, sem quaisquer ressalvas, cumpre salientar que foi objeto de exame pela Suprema Corte, naquela oportunidade, apenas e tão somente a exigência da Taxa de Fiscalização Ambiental (TFA), não tendo havido a análise dos “preços dos serviços e produtos” do IBAMA fixados no mesmo dispositivo legal. Por esta razão, em 05/04/2000 foi parcialmente retificada a proclamação da decisão proferida na ADIn nº 2.178-8/DF (medida cautelar), para constar ter sido suspensa a eficácia, até final decisão da ação direta, apenas dos artigos 17-B, 17-C, 17-D, 17-F, 17-G, 17-H, 17-I e 17-J da Lei nº 6.938/81, introduzidos pelo artigo 8º da Lei nº 9.960/2000.
[2] Taxa de Polícia – Localização e Funcionamento, in Estudos e Pareceres de Direito Tributário, v.3, RT, 180, p.236.
[3] Curso de Direito Constitucional Tributário, 12ª ed., 1999, Malheiros, p.365.
[4] RE´s ns. 116.119-1, 116.577-4 e 204.827-5, dentre outros.
[5] RE nº 202.393/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio; ADIn nº 948/GO, Rel. Min. Francisco Rezek; ADIn nº 2040/PR, Rel. Min. Maurício Corrêa e RE nº 177.835-1, dentre outros.
[6]op.cit., p.236.
[7] Veja-se a lição de Aires Barreto, citando Edgard Neves da Silva:
“Dando revista à hipótese de incidência, constataremos que, nos impostos, esta é sempre uma descrição genérica e hipotética de um fato lícito qualquer, exceto uma atuação estatal. Em polo oposto, a hipótese de incidência das taxas vem demarcada por uma descrição legislativa que consiste sempre numa atuação do Estado, diretamente referida ao obrigado.
Válido ressaltar que, nesse sentido, também se manifestou Edgard Neves da Silva: ‘Havendo na hipótese legal uma atividade estatal dirigida ao contribuinte, o tributo criado será taxa ou contribuição de melhoria; não havendo, a hipótese será de um imposto’.” (in Base de Cálculo, Alíquota e Princípios Constitucionais, 2a Ed. Revista, 1998, Ed. Max Limonad, p.81)