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Artigos - 06/11/23

Mário Costa publica, no CONJUR, artigo sobre ‘Segurança jurídica na cessação de efeitos da coisa julgada tributária’

Veículo: CONJUR

Recentemente, a Abat (Associação Brasileira de Advocacia Tributária), sob a liderança de seu operoso presidente Halley Henares, promoveu profundos debates sobre o contencioso tributário administrativo e judicial, com destaque para a segurança jurídica.

Foi significativo confirmar que o tema tem sido objeto de reflexão também por parte dos integrantes dos chamados tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) mais comprometidos com uma prestação jurisdicional não apenas justa, adequada e eficaz, como coerente, estável, razoável e atenta às suas próprias limitações. Os eminentes ministros André Luiz de Almeida Mendonça e Luiz Alberto Gurgel de Faria externaram, com absoluta propriedade, preocupação com o fato de o STF, por vezes, distanciar-se de tais diretrizes.

É razoável que, em certas situações, não mais prevaleça um positivismo kelseniano extremado. Como pontificam Ronald Dworkin e seus seguidores, é até desejável que assim ocorra no exame de questões complexas (“hard cases”) para cuja solução não haja regramento suficiente, a justificar possa o intérprete socorrer-se diretamente de princípios como igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Todavia, há limites intransponíveis a serem observados.

Não é permitido ao julgador legislar positivamente, ao menos não no exame de casos menos complexos ou para os quais as regras vigentes possibilitem solução adequada. Por mais nobres e corretos que possam ser os objetivos perseguidos, não compete ao Poder Judiciário inovar em relação ao direito posto, excesso que extrapola a “interpretação construtiva” proposta por Dworkin, como bem demonstrou André Mendes Moreira no prestigioso evento.

O STF tem o dever constitucional de assegurar a observância da segurança jurídica e não ser ele próprio gerador de insegurança e instabilidade. Cada nova decisão em que o STF extrapole sua missão constitucional e invada a competência do Poder Legislativo aumenta em muito a insegurança jurídica e, aos poucos, mina a credibilidade e a eficácia do sistema jurídico pátrio.

Especificamente quanto à coisa julgada atinente a obrigações tributárias continuadas (tema acerca do qual me coube expor no evento e objeto de artigo escrito na companhia de Hugo Funaro, constante da obra então lançada), não há dúvida de que não deva implicar, indefinidamente, sucessiva renovação de graves distorções como impor, para todo o sempre, desequilíbrios concorrenciais relevantes, mantendo para alguns poucos ônus fiscal muito inferior ou muito superior ao suportado por seus concorrentes.

Todavia, a opção adotada pelo STF, ao pretender solucionar a questão com a fixação da tese de que decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado” atinentes a “relações jurídicas tributárias de trato sucessivo” (Temas de repercussão geral 881 e 885, REs949.297 e 955.227), não parece a mais adequada.

Ao assim decidir, o STF, ao invés de viabilizar a desejada pacificação social, inovou em relação ao direito posto e ao quanto anteriormente fixado (de forma definitiva, aliás) em diversos precedentes.

Há suficiente regramento infraconstitucional, pois o Código de Processo Civil em vigor (CPC/15, Lei n. 13.105/2015) reafirma a definitividade da coisa julgada (artigo 502), mas apresenta as estreitas hipóteses em que se justifica sua rescisão (artigo 966) e possibilita a alegação de inexigibilidade da obrigação (artigos 525, § 1º, III, cc §§ 12 e 15; e 535, III, cc §§ 5º e 8º), tudo quando atendidos os pressupostos ali fixados. Especifica que Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I- se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença” (artigo 505).

Doutrina e jurisprudência majoritárias sempre entenderam que o advento de decisão do STF em sentido distinto do fixado na coisa julgada individual não seria suficiente para, por si só, fazer cessar os efeitos da coisa julgada individual. O tema foi objeto de decisões tanto do STJ (inclusive em sede de recurso especial representativo da controvérsia, julgado por unanimidade e de forma definitiva) quanto do STF.

A ação revisional foi a opção adotada pelo legislador para viabilizar a revisão individual de cada coisa julgada, quando alterado o estado de direito. Sendo assim considerado o advento de julgamento pelo STF em sentido distinto ao da coisa julgada individual, cabível a propositura da ação revisional até para propiciar a devida certeza sobre a adequação do precedente ao caso concreto, com cuidadoso exame de suas peculiaridades, fatos e direito debatidos (indispensável em se tratando de definição da subsistência da coisa julgada).

Bastava, portanto, que o STF tivesse explicitado que as decisões proferidas no controle concentrado ou no controle difuso sob a sistemática da repercussão geral caracterizam alteração da situação de direito suficiente a legitimar a propositura da ação revisional de que cuida o artigo 505 do CPC/15.

A determinação de imediata cessação dos efeitos da coisa julgada individual pelo tão só advento da decisão distinta do STF foi além, em claro ativismo judicial (ou, em outras palavras, vedada atuação do Poder Judiciário como legislador positivo), e implica riscos e consequências gravíssimos. Neutralizou-se a diferenciação, também constitucionalmente fixada, entre os efeitos das decisões do STF proferidas em controle difuso (condicionados a resolução do Senado Federal ou súmula vinculante, além de mesmo as teses fixadas em repercussão geral serem vinculantes apenas para os órgãos do Poder Judiciário e tão somente para aplicação a processos em curso) e concentrado (com efeitos erga omnes e vinculantes para toda a administração pública).

Inovou-se em relação ao quanto regulado na Constituição Federal e na legislação ordinária, pois não há previsão legal ou constitucional expressa no sentido de que o advento de decisão distinta do STF seja suficiente, por si só, a fazer cessar os efeitos da coisa julgada.

É fato que a edição de lei nova pode implicar automática cessação dos efeitos da coisa julgada, em especial quando esta tiver se fundamentado na disposição legal revogada. A situação poderia ser equiparada à declaração de inconstitucionalidade da norma em sede de ação direta, mas não em sede de repercussão geral e, menos ainda, à hipótese de declaração de sua constitucionalidade. Ao menos nestas duas últimas situações, parece imprópria a equiparação a ponto de dispensar a propositura da ação revisional.

Isso sem contar as diversas possíveis dúvidas nos casos decididos em sede de repercussão geral sem expressa declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal, tornando a prejudicialidade de coisa julgada anterior ainda mais incerta e duvidosa.

A equiparação entre os efeitos das decisões proferidas em sede de controle concentrado e difuso com repercussão geral não encontra fundamento constitucional (ao contrário, como se viu, a Constituição as distingue expressamente). Aceitar a imediata cessação dos efeitos da coisa julgada individual nessas situações implica aceitar a automática e imediata cessação dos efeitos igualmente das demais decisões, não transitadas em julgado e independentemente de serem favoráveis aos fiscos ou aos contribuintes, antes mesmo de sua revogação nos respectivos casos concretos, pelos órgãos jurisdicionais competentes. Afinal, se há fundamento para fazer cessar (de pronto, automaticamente) os efeitos da coisa julgada definitiva e constitucionalmente protegida, porque não seria diferente com as decisões não transitadas em julgado e, portanto, não definitivas?!

As decisões proferidas pelo STF em controle difuso sob a sistemática da repercussão geral passarão a produzir efeitos erga omnes imediatos (o que, além de não estar previsto em qualquer dispositivo constitucional ou legal, contraria frontalmente o disposto no texto constitucional)?!

A ação revisional tornou-se despicienda mesmo quando não se trate de revogação ou declaração de inconstitucionalidade (em ação direta) do dispositivo legal em que fundamentada a coisa julgada?!

A par destas e de tantas outras perplexidades, dúvidas e inseguranças, a definição da mera publicação da ata do julgamento como supostamente suficiente para fazer cessar os efeitos da coisa julgada distinta também carece de fundamento legal ou constitucional e não observa critérios de adequação, proporcionalidade, razoabilidade ou segurança jurídica.

Como é possível fazer cessar os efeitos da coisa julgada sem o advento de fato jurídico de igual relevância ou estatura constitucional (qual seja, outra coisa julgada)?! Como cessar os efeitos da coisa julgada na ausência do inteiro teor da “nova norma” e sem que haja integral conhecimento, clareza, segurança, certeza e definitividade do novo entendimento?! E se, posteriormente à publicação da ata e intimação do acórdão, vier o STF a alterar o julgado ou modular seus efeitos?! Como ficarão os contribuintes e fiscos que tiverem passado a pautar suas condutas em conformidade com o novo entendimento ainda não definitivo e, após, sobrevier alteração ou modulação dos efeitos da decisão?!

Recorde-se que a própria PGFN sempre defendeu a aplicabilidade do “critério trânsito em julgado” (Parecer PGFN/CRJ nº 492/2011), com o que a adoção de critério distinto implica, por si só, surpresa e insegurança jurídica, dada a adoção de critério ainda mais gravoso. Aliás, a Fazenda Pública tem interesse ainda maior em ser a data do trânsito em julgado do acórdão atinente ao novo entendimento do STF adotada como marco para a cessação dos efeitos da coisa julgada distinta que lhe era favorável. Enquanto num ou noutro cenário a alteração do entendimento favorável ao contribuinte deverá observar a anterioridade (anual ou nonagesimal), assim não se dará na reversão do entendimento antes favorável à Fazenda Pública, em que a cessação dos efeitos da coisa julgada efetivamente ocorrerá de pronto (em sendo integralmente mantidas, claro, as teses atinentes aos Temas RG 881 e 885 em suas atuais redações).

Conclusão.

Vê-se, pelo exposto, que o entendimento adotado pelo STF no julgamento dos Temas RG 881 e 885, no sentido da imediata cessação de efeitos da coisa julgada individual em matéria tributária pela mera publicação da ata de julgamento de decisão em sentido distinto (proferida no controle concentrado ou no controle difuso com repercussão geral) não era necessário.

Caso se mantenha o quanto decidido, terá o STF não apenas inovado em relação ao disposto na lei, na Constituição e na jurisprudência, como gerado grande insegurança jurídica e novas dúvidas relevantes, com possíveis consequências ainda mais graves e imprevisíveis.

Ainda está em tempo de serem expurgados os excessos verificados na referida decisão e assegurada a necessária observância dos princípios constitucionais da isonomia e livre concorrência pela tão só interpretação do disposto no artigo 505 do CPC/15 em conformidade com o texto constitucional. Esta seria uma decisão razoável, com adequada fundamentação legal e constitucional, em conformidade com os pressupostos e objetivos de estabilidade, coerência, previsibilidade, razoabilidade, proporcionalidade e pacificação social.

Caso, eventual e lamentavelmente, assim não venha o STF a proceder, há tempo para, ao menos, (1) fixar o trânsito em julgado (e não a mera publicação da ata de julgamento) da nova decisão do STF como marco para a cessação dos efeitos das coisas julgadas com ela não condizentes, bem como (2) modular os efeitos do quanto definido nos Temas RG 881 e 885 no que respeita (2.a) a todas as situações atingidas pelo novo entendimento; (2.b) ou, ao menos, aos temas definidos no controle difuso (questão que sequer dizia respeito aos casos julgados e com justa expectativa de não equiparação às decisões proferidas em controle concentrado, menos ainda para fins de imediata cessação de seus efeitos).

Por fim, se mantida a data da publicação da ata de julgamento como marco da cessação dos efeitos, caberá modulação (2.c) para os casos em que verificada relevante distinção em relação à consideração da data do trânsito em julgado do acórdão do STF com o novo entendimento (à vista da justa expectativa de que este seria o “pior cenário”, inclusive por ter sido o critério fixado pela própria PGFN em parecer devidamente publicado).

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