Veículo: ConJur
Autor(es): Luís Henrique Pires
Inaplicabilidade da equidade para reduzir honorários em ações contra a Fazenda Pública
Tema recorrente nos Tribunais diz respeito à possibilidade de aplicação da equidade prevista no art. 85, §8º do CPC1 como critério para reduzir honorários advocatícios, em vez de ser utilizado apenas nos casos de majoração da verba nas situações específicas ali previstas. Recentemente, inclusive, o assunto foi afetado à Corte Especial do STJ (RESP n. 1.644.077) cujo julgamento deverá nortear todos os demais julgados que tratam do tema.
A questão aplica-se a quaisquer tipos de ação mas, especificamente nas causas envolvendo a Fazenda Pública, há particularidades que, em regra, não têm sido objeto de debates específicos, não obstante mereçam ser observadas diante das normas aplicáveis aos litígios envolvendo os entes estatais, em especial os parágrafos 3º a 5º do próprio artigo 85.
Com efeito, sob a égide do Código Processual de 1973, nas ações envolvendo a Fazenda Pública, quando vencida, a aplicação da equidade era a regra, em face do disposto no §4º do artigo 20.2 Não raro, os honorários eram fixados de modo desvinculado e em fração irrisória frente ao valor da causa ou do proveito econômico envolvido. Com isso, “na prática, tais regras fizeram surgir enormes distorções e um tratamento não isonômico entre os litigantes, sempre em detrimento dos patronos das partes privadas”.3
O Código atual modificou substancialmente o tema no que respeita às causas envolvendo a Fazenda Pública. O §3º do art. 85 estabelece uma regra específica a ser observada (“Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios estabelecidos nos incisos I a IV do §2º e os seguintes parâmetros”) e os incisos I a V preveem percentuais também específicos (mínimos/máximos) a serem estabelecidos pelo juiz “sobre o valor da condenação ou do proveito econômico”, acrescentando o §4º que, “não havendo condenação principal ou não sendo possível mensurar o proveito econômico obtido, a condenação em honorários dar-se-á sobre o valor atualizado da causa”. Essa gradação de critérios (condenação e/ou proveito econômico ou, não sendo possível mensurar, o valor atualizado da causa) é similar à aplicável às causas entre particulares (conforme §2º).
Já o §8º estabelece que “nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo, o juiz fixará os honorários por apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do §2º”.
A discussão que se põe diz respeito às situações em que a equidade prevista no §8º pode ser aplicada. Parece claro, a princípio, que as situações ali previstas são taxativas, o que implica dizer que, se o proveito econômico for estimável e não irrisório e se o valor da causa não for muito baixo, aplicam-se normalmente as regras do §2º (causas entre particulares) ou do §3º (causas envolvendo a Fazenda Pública). Caso, contudo, verificadas algumas das situações previstas no §8º, passa a ter cabimento a fixação da equidade.
Como bem observado pelo Min. Raul Araújo em acórdão oriundo de litígio envolvendo particulares (§2º do art. 85), julgado pela 2ª Seção do STJ, mas cujo entendimento pode ser estendido aos casos contra a Fazenda Pública (§3º), “a aplicação da norma subsidiária do art. 85, §8º, verdadeiro ‘soldado de reserva’, como classificam alguns, somente será cogitada na ausência de qualquer das hipóteses do §2º do mesmo dispositivo”4, de modo que, consequentemente, “a incidência, pela ordem, de uma das hipóteses do art. 85, §2º, impede que o julgador prossiga com sua análise a fim de investigar eventual enquadramento no §8º do mesmo dispositivo, porque a subsunção da norma ao fato já se terá esgotado”.
No entanto, passaram a surgir interpretações divergentes quanto ao alcance do dispositivo. A discussão é mais acentuada, principalmente, em demandas cujo valor da causa seja substancial, mas com baixo nível de complexidade do litígio. Passou-se a questionar, nesses feitos, se a fixação dos honorários sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou da causa (atualizado) poderia implicar enriquecimento sem causa do advogado.
Nesse contexto, uma primeira questão – que é pertinente a todas as causas, independentemente de envolver particulares ou entes estatais – é saber se o §8º do art. 85 tem aplicação nas situações taxativas nele previstas e, portanto, somente pode ser utilizado para majorar os honorários ou se uma interpretação mais ampla permitiria sua aplicação para reduzir a sucumbência. Essa foi a discussão central de que tratou a 2ª Seção do STJ no julgado retro citado e certamente permeará os debates no caso recentemente afetado à Corte Especial.
Com todo o respeito ao entendimento adotado pela posição minoritária do referido julgado, a questão, aqui, parece ser de opção legislativa e não, propriamente, do método de interpretação mais adequado. Ao estabelecer que a equidade tem cabimento nas causas em que (a) o valor for inestimável, (b) de proveito econômico irrisório e (c) ou quando o valor da causa for “muito baixo”, parece não haver espaço para a adoção de interpretação que permita reduzir os honorários quando o valor for conhecido e elevado. Certo ou errado, foi a opção do legislador que, se o caso, deve ser modificada na via legislativa adequada.
Na linha do quanto pontuado pelo Min. Antonio Carlos Ferreira no julgamento da 2ª Seção, “o texto legal evidencia a inequívoca vontade do legislador em balizar os limites percentuais mínimo e máximo para o cálculo dos honorários advocatícios (…) limitando, sem margem para dúvidas ou interpretação, as hipóteses nas quais autorizou o magistrado a arbitrar a verba por apreciação equitativa”, ao que acrescenta o Min. Luis Felipe Salomão: “os termos empregados no citado parágrafo 8º – ‘inestimável’ e ‘irrisório’ – segundo penso, não dão margem para que o intérprete, a pretexto de utilizar interpretação extensiva, possa validamente extrair o sentido de ‘muito alto’ ou ‘exorbitante’. Nesse caso, é, com o devido respeito, ao invés de interpretar, legislar em nome do legislador, pois este fez uma opção e a expressou no texto legal” (destaques não originais). Há julgados da 2ª Turma da 1ª Seção (responsável pelo julgamento de causas contra o Poder Público) no mesmo sentido.5
A segunda questão envolve o exame da aplicação da equidade nas causas específicas envolvendo a Fazenda Pública.
Ao abandonar a regra do §4º do art. 20 do CPC anterior e criar, no Código atual, uma sub-regra (§3º) distinta até mesmo da regra geral aplicável aos demais casos (previstas no §2º), com a previsão de faixas percentuais de acordo com o valor envolvido no feito (incisos I a V do §3º), o legislador tratou de diferenciar as causas envolvendo o Poder Público das demais.
Assim o fez, por certo, diante dos princípios aplicáveis à Fazenda Pública, em especial a defesa e preservação do interesse público (quando o Estado perde uma ação e tem de ressarcir o particular, quem perde é a coletividade que vai custear o pagamento) e, de outro lado, a constatação de que as ações envolvendo a Administração Pública podem, com maior frequência do que aquelas circunscritas a particulares, atingir valores mais elevados do que a média, seja quando o ente público figure no polo ativo (execuções fiscais), seja quando integre o feito como réu (ações de restituição de tributos e indenizações, sobretudo).
É isso o que justifica a inserção das faixas percentuais dos incisos I a V do §3º, a primeira (e maior) delas prevendo o montante de 20% em causas de até 200 salários mínimos e a última prevendo o mínimo de 1% e o máximo de 3% (ou seja, muito inferior ao mínimo de 10% aplicável a litígios entre particulares) em causas superiores a 100.000 salários mínimos.
Não haveria sentido, de um lado, prever percentuais diferenciados e menores nas causas contra o Poder Público e, de outro, admitir ainda assim a redução por força da aplicação da equidade. Implicaria penalizar duplamente o advogado particular nessa situação. A criação de um regime específico para causas envolvendo o Poder Público afasta, por óbvio, a aplicação de regras que com ele sejam incompatíveis.
Por último, ainda que a equidade do §8º fosse aplicável às ações envolvendo entes estatais, fato é que sua utilização limitar-se-ia às situações excepcionalíssimas em que o contexto da lide pudesse justificar o afastamento da regra positiva eleita pelo legislador. É o que se extrai dos julgados que têm admitido a redução dos honorários aquém das faixas do §3º (STJ, 1ª Turma, RESP n. 1.795.760, j. 21/11/2019 e AGRESP n. 1.423.290, j. 17/09/2019, ambos de relatoria do Min. Gurgel de Faria, sendo vencida no primeiro a Min. Regina Helena Costa).
O exame criterioso do substrato fático desses julgados revela que não houve a adoção indistinta da equidade nas ações contra o Poder Público.
No RESP n. 1.795.760 avaliava-se a situação – comum, inclusive – do ajuizamento de execução fiscal em face de débito com exigibilidade suspensa. O valor da dívida era superior a R$ 30 milhões e o contribuinte opusera exceção de pré-executividade, demonstrando a suspensão da exigibilidade. Como de fato o crédito estava suspenso, o próprio ente público cancelou a certidão de dívida ativa, ao que sobreveio, como consequência, a extinção da respectiva ação. Fixados honorários com base no percentual mínimo previsto na faixa adequada do §3º do art. 85 – o que resultava em valor aproximado de R$ 1,4 milhão – seguiu-se apelação da Fazenda Pública, provida para reduzir os honorários a R$ 10 mil.
O recurso especial interposto pelo particular foi rejeitado por entender-se que “a apresentação de uma simples petição na execução, de caráter meramente informativo” não poderia ensejar honorários no montante fixado pelo juízo de primeiro grau, acrescentando-se que “para esses casos em que o trabalho prestado pelo advogado da parte vencedora tenha se mostrado absolutamente desinfluente para o resultado do processo, tenho que sua remuneração não deve ficar atrelada aos percentuais mínimos e máximos estabelecidos no §3º”, comportando essa “situação insólita” uma interpretação “teleológica e sistemática, notadamente para atingir os postulados constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade”.
O próprio julgado ressalvou expressamente que “a fixação de honorários advocatícios sucumbenciais mediante aplicação de percentual sobre a dimensão econômica da causa deve se dar nas situações usuais nas quais se identifica que o esforço persuasivo do causídico se mostrou relevante para a vitória no processo”.
No AgInt no RESP n. 1.423.290, examinava-se exceção de pré-executividade interposta para excluir o contribuinte do polo passivo, sob o argumento de sua ilegitimidade (questão, igualmente comum, de inclusão de sócio na execução fiscal). A exceção fora acolhida, mas os honorários fixados em montante desatrelado das faixas percentuais previstas no §3º do art. 85.
As razões de decidir fundamentaram-se no fato de que a exceção de pré-executividade não é, propriamente, um tipo de ação, “é espécie de objeção, talhada pela jurisprudência, com o fim de agitar questões passíveis de serem conhecidas ofício pelo órgão judicial”. Daí porque, tratando-se de “objeção” que não atinge propriamente o crédito tributário (que permanece incólume em face do contribuinte original e de possíveis outros corresponsáveis), os honorários “devem ser fixados com base nos critérios do §2º do art. 85 do CPC/2015, mediante apreciação equitativa do magistrado”.
Vê-se, assim, que mesmo os julgados que admitem a equidade para reduzir os honorários em ações contra a Fazenda Pública o fazem em situações excepcionais, o que implica o reconhecimento de que, em ações comuns (execuções fiscais embargadas, repetições de indébito, ações de indenização contra o Poder Público, ou mesmo exceções de pré-executividade que impliquem o cancelamento integral ou parcial do crédito tributário envolvido, dentre outras possíveis ações ou situações), cujo iter processual normal seja observado (ação, resposta, saneamento, produção probatória, sentença, recursos etc.) e, por consequência, o trabalho do advogado mostre-se essencial ao resultado do litígio, não há espaço para reduzir os honorários com fundamento no art. 85, §8º do CPC.
Conclusão
Espera-se que a Corte Especial do STJ privilegie o entendimento de que o §8º do art. 85 do CPC tem aplicação restrita às hipóteses ali previstas, viabilizando a majoração – e jamais a redução – dos honorários com base na equidade, em especial nas causas envolvendo a Fazenda Pública, em relação às quais o legislador reservou faixas específicas de valores (§3º).
Mesmo se admitida a equidade para reduzir os honorários, que seja feita a devida ressalva de sua aplicação apenas aos casos excepcionais em que o litígio sequer tenha sido devidamente angularizado ou nas situações, igualmente anormais e pouco frequentes, em que a atuação do advogado não tenha se mostrado essencial à resolução do litígio.
1 § 8º Nas causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo, o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação equitativa, observando o disposto nos incisos do § 2º.
2 § 4 o Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior.
3 Renato José Cury, Código de Processo Civil Anotado, Coord. José Rogério Cruz e Tucci, Manoel Caetano Ferreira Filho, Ricardo de Carvalho Aprigliano, Rogéria Fagundes Dotti e Sandro Gilbert Martins, GZ Editora, Rio de Janeiro, 2016, p. 134.
4 RESP n. 1.746.072, Rel. p/ acórdão Min. Raul Araújo, j. 13/02/2019.
5 AgInt no RESP n. 1.813.200, Min. Francisco Falcão, j. 03/10/2019 e AgInt no RESP n. 1.812.800, Min. Mauro Campbell Marques, j. 03/10/2019.
https://www.conjur.com.br/2020-jan-27/opiniao-inaplicabilidade-equidade-reduzir-honorarios