Veículo: Revista Dialética de Direito Tributário nº 162 - pp 21-31
Autor(es): Luís Henrique da Costa Pires
Luís Henrique da Costa Pires, advogado em São Paulo e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo
1. Introdução
Atualmente, a quase totalidade dos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal, incluindo o IRPJ, CSL, PIS, COFINS e IPI, deve ser apurada e declarada pelos contribuintes em DCTF, cuja disciplina encontra-se na Instrução Normativa nº 903/08.
Dentre os efeitos gerados pela entrega da DCTF, um dos mais sensíveis ao dia-a-dia dos contribuintes diz respeito à natureza de “confissão de dívida” que tal documento encerra, conforme prevê o art. 5º, §1º, do DL nº 2.124/84.[1]
Isso porque, a jurisprudência, já há algum tempo, consolidou entendimento no sentido de que a declaração do débito em DCTF implica a constituição do crédito tributário, afastando a necessidade de lavratura de Auto de Infração.[2]
Assim, declarado o débito e verificado o não-pagamento ou a ausência de qualquer condição suspensiva de sua exigibilidade, o montante pode ser enviado para inscrição em Dívida Ativa e posterior ajuizamento de Execução Fiscal, sem a necessidade de prévia intimação do contribuinte para apresentação de defesa, inclusive sob pena de prescrição (e não decadência) do direito da Procuradoria da Fazenda Nacional à cobrança, se não for observado o prazo qüinqüenal previsto no art. 174, do CTN.
Um dos problemas correlatos a essa realidade, ainda pouco difundido na doutrina ou mesmo na jurisprudência, mas que tem causado sucessivos desgastes na relação Fisco-Contribuinte, diz respeito aos casos em que o débito é originariamente declarado em DCTF mas, por algum motivo, vem a tornar-se total ou parcialmente inexigível (nas hipóteses, por exemplo, em que existe medida suspensiva, posterior compensação ou pagamento dos valores, superveniência de medida judicial ou administrativa que implique a extinção total ou parcial do crédito tributário, declaração de inconstitucionalidade do tributo pelo STF, dentre outros),
O que sucede em tais casos é que, por vezes, as autoridades fiscais vêm a constatar, em procedimento de fiscalização, que o tributo foi declarado, mas não acusam qualquer pagamento. Por mais que o contribuinte demonstre que o não-pagamento deve-se a alguma causa de suspensão ou mesmo extinção (parcial ou total) da dívida originariamente declarada, a autoridade encarregada do caso determina o prosseguimento da cobrança.
Nesses casos, é comumente expedido contra o contribuinte o documento intitulado “Carta-Cobrança”, no qual é facultado prazo para “regularização” ou pagamento dos valores, sob pena de prosseguimento da cobrança, mediante o envio do suposto débito para inscrição em Dívida Ativa.
A litigiosidade começa a surgir a partir do momento em que o contribuinte apresenta seus esclarecimentos. Via de regra, os argumentos são sumariamente rejeitados por autoridade singular da Receita Federal (quando, não raramente, são simplesmente ignorados, sem sequer serem apreciados por decisão motivada).
A partir de então, muito embora o Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal permita a interposição da denominada “Manifestação de Inconformidade”, cujo julgamento compete às Delegacias de Julgamento da Receita Federal – DRJ, tal recurso, quando processado, geralmente não tem seu efeito suspensivo reconhecido (diz-se “quando processado” porque a autoridade singular, por vezes, entende que o aludido recurso sequer é cabível, não enviando os autos para a DRJ competente, eventualmente recebendo o pleito como “recurso hierárquico”, com fundamento nos artigos 56 e seguintes da Lei nº 9.784/99, cujo julgamento compete à autoridade da Receita Federal superior àquela que proferiu a decisão).
Isto significa que, mesmo durante o eventual processamento do recurso, o débito é enviado para inscrição em Dívida Ativa e executado judicialmente, remetendo o contribuinte à via da Exceção de Pré-Executividade para a discussão da nulidade do título, com todos os percalços inerentes a essa modalidade de defesa processual, em especial a cognição restrita e a constante tendência de os juízes reputarem que a matéria deva ser questionada por meio de Embargos à Execução, após a apresentação de garantia.
O objetivo do presente texto é o de demonstrar que, nos casos em que o débito é declarado em DCTF, mas subsiste medida suspensiva ou extintiva da obrigação (por ocasião da declaração dos débitos, ou mesmo por fato superveniente), tem o contribuinte, nos casos em que a autoridade de primeiro grau decide pelo prosseguimento da cobrança, o direito à interposição de Manifestação de Inconformidade, dotada de efeito suspensivo, de modo que, até final decisão no âmbito administrativo, não se mostra viável a inscrição do débito em Dívida Ativa ou o ajuizamento de Execução Fiscal.
2. AManifestação de Inconformidade prevista no art. 174, III, do Regimento Interno da Receita Federal.
O artigo 174, III, do Regimento Interno da Receita Federal (aprovado pela Portaria nº 95, de 30/04/2007) estabelece que:[3]
“Art. 174. Às Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento – DRJ, órgãos com jurisdição nacional, compete, especificamente, julgar, em primeira instância, processos administrativos fiscais:
I – de determinação e exigência de créditos tributários, inclusive devidos a outras entidades e fundos, e de penalidades;
II – relativos a exigência de direitos antidumping, compensatórios e de salvaguardas comerciais; e
III – de manifestação de inconformidade do sujeito passivo contra apreciações das autoridades competentes relativos à restituição, compensação, ressarcimento, imunidade, suspensão, isenção e à redução de tributos e contribuições.”
A leitura do dispositivo revela que a Manifestação de Inconformidade, além de ser cabível em processos que tenham por objeto a compensação de tributos (disciplinada, também, no artigo 74, da Lei nº 9.430/96), pode ser interposta contra decisões que envolvam, dentre outros, o reconhecimento da suspensão ou da redução de tributos.
Disto resulta ser cabível a Manifestação de Inconformidade nos casos em que o contribuinte demonstra que o débito declarado em DCTF está suspenso por alguma das causas previstas no artigo 151, do CTN, ou mesmo qualquer outra eventualmente vigente, e a autoridade administrativa de primeiro grau manifesta discordância (por exemplo, ao não reconhecer a existência e/ou o alcance da medida judicial deferida ao contribuinte, ao questionar a integralidade de valor depositado ou, ainda, em temas ligados ao parcelamento de tributos), determinando o prosseguimento da cobrança (“Carta-Cobrança”), a despeito dos esclarecimentos apresentados pelo contribuinte.
O mesmo sucede nos casos em que o débito é declarado em DCTF como exigível mas, posteriormente, por circunstâncias diversas, deixa de ser devido (por exemplo, quando o tributo deixa de ser devido por força de decisão judicial inter partes ou mediante declaração de inconstitucionalidade da exigência pelo Supremo Tribunal Federal, quando há reconhecimento administrativo de que o tributo não é mais exigível total ou parcialmente, por força da edição de Ato Declaratório ou equivalente ou, ainda, quando sobrevém a prescrição do direito à cobrança[4]).
Em tais hipóteses ocorre a “redução” de tributos referida no inciso III, do artigo 174, do Regimento Interno da Receita Federal, observando-se que o termo em questão deve ser compreendido em sentido amplo, de modo a abranger não apenas a diminuição do valor tributário, mas também sua eliminação por completo (redução a zero), como ocorre, exemplificativamente, nos casos envolvendo a prescrição integral do direito à cobrança.
Vê-se, por outro lado, que o fato de o débito ter sido declarado em DCTF, configurando a “confissão de dívida” a que faz referência o parágrafo 1º, do artigo 5º, do DL nº 2.124/84, não tem qualquer relevância no que respeita ao cabimento da Manifestação de Inconformidade nas hipóteses previstas no Regimento Interno da Receita Federal.
Primeiro, porque o dispositivo normativo em exame não faz qualquer distinção ou mesmo referência quanto à constituição do crédito tributário por declaração. O cabimento da Manifestação de Inconformidade depende, unicamente, de versar o recurso sobre uma das matérias ventiladas no inciso III, do artigo 174, sendo certo que, não instituída qualquer outra condição de ordem material ou mesmo formal (além daquelas inerentes a qualquer procedimento recursal – atendimento do prazo, forma escrita etc.), não é possível à autoridade administrativa criar qualquer outra restrição, sob pena de ilegalidade.
O que a jurisprudência inicialmente citada tem reconhecido é a desnecessidade da constituição do crédito tributário via Auto de Infração, nos casos em que o contribuinte auto-declara os montantes. Tal entendimento, contudo, não afasta o direito à interposição de recursos em situação pós-lançamento, nos casos em que a própria legislação contempla o seu cabimento, como sucede com as hipóteses previstas no artigo 174, III, do Regimento Interno da Receita Federal, que elenca os casos em que a Manifestação de Inconformidade é cabível sem qualquer distinção quanto ao fato de o débito ter sido inicialmente declarado em DCTF.
Em segundo lugar, mesmo o efeito da confissão referida no DL nº 2.124/84 não é absoluto, como usualmente entendem as autoridades fiscais. Embora pareça perfeitamente legítima a instituição de obrigação acessória em que o contribuinte aponte os montantes das obrigações tributárias sob sua responsabilidade, relativamente a determinado período, a confissão (assim tratada pelo DL nº 2.124/84) merece temperamentos quanto aos seus efeitos.
Realmente, a lei civil e processual civil que trata da confissão, à qual o legislador tributário deve obedecer por força do disposto no artigo 110, do CTN[5], estabelece que esta não tem eficácia em relação a direitos indisponíveis (arts. 213, do CC e 351, do CPC).
Em matéria de obrigação tributária – caracterizada, dentre outros, pelos princípios da legalidade e da tipicidade – é sabido que a verdade material sobrepõe-se a eventuais declarações incorretas feitas pelo contribuinte. O erro no preenchimento de uma declaração não tem o efeito, por óbvio, de deflagrar o nascimento da obrigação tributária, cuja ocorrência depende da efetiva subsunção do ato realizado à hipótese de incidência descrita em lei.
Além disso, a confissão implica o reconhecimento da verdade de um fato (art. 348, do CPC), mas nada obsta que um fato verídico em determinado momento (por exemplo, a confissão de um tributo como devido) deixe de sê-lo em momento posterior, o que pode ocorrer nos casos em que o crédito tributário, declarado como devido, passe a não ser mais exigível em função de fato posterior (prescrição ou declaração de inconstitucionalidade da exigência pelo STF).
A confissão refere-se aos fatos mas, considerando a natureza ex lege de que se reveste a obrigação tributária, a exigência fiscal somente será devida se tiverem sido atendidos os ditames legais e constitucionais aplicáveis.
Nesse sentido, por exemplo, sobretudo em matéria de imposto de renda, na qual é comum o erro no preenchimento da declaração anual, há inúmeros julgados do Conselho de Contribuintes reconhecendo a improcedência de Autos de Infração quando comprovado pelo contribuinte, a qualquer tempo, que a obrigação tem origem em erro de preenchimento, devendo prevalecer a verdade material.[6]
Como bem adverte Luciano Amaro, “A vontade manifestada na prática de certos atos é abstraída (…); ainda assim, surge a obrigação, cujo nascimento não depende nem da vontade nem do conhecimento do indivíduo. Aliás, independe, também, de estar o sujeito ativo ciente do fato que deu origem à obrigação.”[7]
Tanto é assim que a própria legislação admite a retificação da DCTF, atribuindo à declaração retificadora “a mesma natureza da declaração originariamente apresentada” (cf. art. 11, §1º, da IN-SRF nº 903/08), muito embora proíba a retificação quando tiver por objeto alterar saldos a pagar já enviados à Procuradoria da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ativa ou em relação a débitos aos quais a pessoa jurídica já tenha sido intimada sobre o início de procedimento fiscal, o que acaba por restringir em muito o direito do contribuinte, tendo em vista que, geralmente, só é percebido o equívoco na DCTF, ou a necessidade de alteração do status de débitos lá apontados – por exemplo, quando sobrevém prescrição – quando é intimado para pagar os valores, mediante “Carta-Cobrança” ou equivalente.
O fato, portanto, de o débito ter sido declarado em DCTF não configura qualquer óbice à abertura da via administrativa para a discussão de questões verificadas posteriormente à declaração do débito. Várias unidades da Receita Federal, de resto, vêm admitindo o cabimento da Manifestação de Inconformidade, embora sem o reconhecimento de seu efeito suspensivo, tema que será abordado a seguir.
3. Efeito suspensivo da Manifestação de Inconformidade. Correta aplicação do art. 151, III, do CTN.
O art. 151, III, do CTN, estabelece que “suspendem a exigibilidade do crédito tributário (…) III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo administrativo tributário.”
O argumento que tem sido sustentado pela Administração para negar o efeito suspensivo às Manifestações de Inconformidade interpostas com fundamento no artigo 174, III, do Regimento Interno da Receita Federal, é o de que não haveria previsão de recebimento no efeito suspensivo. Aplicar-se-ia, assim, a regra geral do artigo 61, da Lei nº 9.784/99, que estabelece, como padrão, o processamento de recursos administrativos unicamente no efeito devolutivo.[8]
A questão que merece reflexão pode ser resumida na interpretação da expressão “nos termos das leis reguladoras do processo administrativo tributário.” O entendimento de algumas autoridades fiscais tem sido no sentido de que a “lei reguladora” do processo administrativo poderia estabelecer ou não o efeito suspensivo. Se acolhida essa premissa, não haveria reparo na interpretação fiscal de que a Manifestação de Inconformidade, na hipótese em exame, não seria dotada de efeito suspensivo, tendo em vista que o artigo 174, III, do Regimento Interno da Receita Federal nada dispõe a respeito.
O tema, contudo, contempla interpretação diversa.
Com efeito, é sabido que os incisos, parágrafos, alíneas etc. têm seu fundamento de validade no caput. Sua interpretação, por conseqüência, deve ser conforme e condizente com a norma que lhe dá suporte. Qualquer interpretação que leve à existência de antinomia entre o caput e algum parágrafo, inciso ou alínea carece de sustentação.
É essa constatação, aliás, que tem levado a Suprema Corte, em matéria de Ação Direta de Inconstitucionalidade, a aplicar a teoria do “arrastamento” (ou da declaração de inconstitucionalidade por “atração” ou “conseqüencial”), quando determinado preceito vem a ser declarado inconstitucional e, como outros são dele dependentes, a declaração é a eles estendida, ainda que não tenham sido mencionados na petição inicial.[9]
Aliás, embora óbvia, tal constatação encontra fundamento na Lei Complementar nº 95/98 (que dispõe sobre “a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis”), cujo artigo 11, III, “c”[10], estabelece que os parágrafos devem expressar “aspectos complementares” (ou, se o caso, as exceções) às normas veiculadas pelo caput. Embora o dispositivo faça referência aos parágrafos, por certo se aplica também aos incisos, alíneas etc., que igualmente têm por objetivo detalhar aspectos já abrangidos na regra jurídica veiculada na norma (caput) que lhes serve de fundamento.
Disto resulta que, se fosse possível à “lei reguladora” referida na parte final do inciso III, do artigo 151, estabelecer ou não o efeito suspensivo ao recurso administrativo, haveria incompatibilidade com o caput, já que a suspensão nele mencionada poderia, se o caso, ser retirada pela União Federal, Estados e Municípios, conforme lhes conviesse, o que não parece fazer sentido.
Isto não significa que qualquer petição apresentada pelo contribuinte no processo administrativo, mesmo que por ele denominada de “impugnação”, “defesa”, “recurso” ou “manifestação de inconformidade”, tenha o efeito, per si, de atrair automaticamente a regra da suspensão prevista no inciso III.
Para que a defesa ou o recurso tenham efeito suspensivo é preciso que exista, efetivamente, uma “lei reguladora” de processo administrativo tratando especificamente daquela hipótese. Se não houver legislação disciplinando, qualquer petição apresentada pela contribuinte, independentemente da denominação que lhe venha a ser conferida, dependeria, para ter efeito suspensivo, do beneplácito da autoridade responsável, com fundamento no artigo 61, parágrafo único, da Lei nº 9.784/99.[11]
Pode-se dizer, assim, que, existindo legislação prevendo algum tipo de defesa ou recurso no âmbito de processo destinado à apuração de crédito tributário, o efeito suspensivo é a ele inerente. Nas palavras de Hugo de Brito Machado:
“Não podem as leis, quer federais, estaduais ou municipais, negar às reclamações e/ou aos recursos esse efeito suspensivo ou, mais exatamente, impeditivoda exigibilidade do crédito tributário.
Com efeito, melhor seria dizer que as reclamações e os recursos impedemque o crédito se torne exigível, pois na verdade exigível ainda não é ele no momento da interposição, quer da reclamação, quer do recurso, pois só com a constituição definitiva o crédito se torna exigível.”[12]
De outro lado, importante observar que o inciso III trata das “leis reguladoras” (no plural) do processo administrativo tributário. A referência ao plural impõe o reconhecimento de que, além da disciplina prevista no Decreto nº 70.235/72, que trata do procedimento aplicável aos tributos oriundos de Auto de Infração, a suspensão conferida pelo artigo 151, III abrange outros procedimentos que, de alguma forma, tenham por finalidade a apuração e determinação de crédito tributário.
Tal constatação coaduna-se com o status de Lei Complementar de que dispõe o Código Tributário Nacional, cuja função, dentre outras, é a de regular em âmbito nacional (e não apenas federal) a matéria atinente à obrigação e ao lançamento tributários (art. 146, III, “b”, da Constituição), incluindo as características essenciais e mínimas do processo administrativo de apuração de créditos tributários.
Não se justifica, assim, o excessivo apego das autoridades federais às regras previstas no Decreto nº 70.235/72, remetendo à vala comum da Lei nº 9.784/99 todos os casos que não forem nele regulados, incluindo aqueles resultantes de débitos que foram auto-declarados em DCTF mas, posteriormente, deixaram, por algum motivo, de ser exigíveis.
Aliás, é curioso notar que o próprio Decreto nº 70.235/72 não prevê de forma expressa a atribuição de efeito suspensivo às impugnações (fazendo-o apenas em relação aos recursos voluntários – art. 33). Não se tem notícia, contudo, de qualquer interpretação que deixe de reconhecer às impugnações o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário.
Vale referir, ainda, que questão semelhante à presente já foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, em tema específico de compensação. Muito se discutiu acerca do efeito atribuído aos recursos interpostos em processos administrativos de compensação, no período anterior à Lei nº 10.833/03, que passou a reconhecer expressamente o efeito suspensivo à Manifestação de Inconformidade interposta pelo contribuinte contra a decisão não-homologatória do encontro de contas (antes, havia previsão de cabimento do recurso, mas sem referência ao efeito suspensivo)
A posição da Procuradoria da Fazenda Nacional era no sentido de que apenas com a Lei nº 10.833/03 os recursos passaram a ter efeito suspensivo, justamente porque, antes, não havia previsão específica a respeito.
Após alguma hesitação inicial, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que mesmo os recursos interpostos antes da referida lei são dotados de efeito suspensivo, justamente porque seu objetivo é o de impugnar a cobrança do tributo e, como tal, não se poderia admitir, antes mesmo da decisão final no âmbito administrativo, o prosseguimento da exigência.
Dignas de nota, no caso, as palavras da Ministra Eliana Calmon, ao afirmar que o reconhecimento do efeito suspensivo na hipótese não implicaria desconsiderar a jurisprudência consolidada naquela Corte, no sentido de que as hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário previstas no artigo 151, do CTN, são numerus clausus e não podem se ampliadas, mas apenas significaria “interpretar o real sentido do art. 151, III, do CTN, que sugere a suspensão da exigibilidade do tributo quando existente uma impugnação do contribuinte à cobrança do tributo, qualquer que seja esta.”[13]
Percebe-se, assim, a atual tendência da jurisprudência em reconhecer o efeito suspensivo aos recursos que são legitimamente interpostos, nos termos de legislação que discipline o seu cabimento.
4. Aplicação do art. 201, do CTN. Racionalidade do sistema.
A constatação de que a “lei reguladora” a que faz referência o artigo 151, III, do CTN, não pode subtrair o efeito suspensivo do recurso administrativo coaduna-se, por outro lado, com a regra constante do artigo 201, ao definir como “dívida tributária” aquela inscrita na repartição competente, depois de esgotado o prazo para pagamento em lei ou por decisão final proferida em “processo regular”.
A expressão “processo regular” não é casuística e tem grande importância na interpretação do tema. Confirma a assertiva de que, se houver processo regulado por legislação específica – não se resumindo aos feitos disciplinados pelo Decreto nº 70.235/72 (até porque o CTN é aplicável aos procedimentos atinentes a tributos estaduais e municipais) –, não se pode falar em “dívida tributária” antes de finalizado o feito. Implica o reconhecimento, por outro lado, de que os recursos interpostos, quando há processo regular, têm necessariamente efeito suspensivo.
A conjugação dos artigos 151, III e 201, do CTN, demonstra a perfeita racionalidade do sistema (ou subsistema) que trata da formação da dívida tributária, nos casos em que a constituição do crédito, independentemente da modalidade (de ofício ou via auto-declaração do débito pelo contribuinte), vem a sofrer contestação por parte do devedor, devidamente regulada por dispositivo normativo, como ocorre nos casos de interposição de Manifestação de Inconformidade regulados pelo Regimento Interno da Receita Federal.
Enquanto o artigo 151, III, prevê que o recurso, se previsto em lei “reguladora”, tem o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário, o artigo 201 determina que só existe “dívida tributária” após final decisão proferida em processo “regular”. Ambos os dispositivos se completam e impõem o reconhecimento de que, se a legislação faculta ao contribuinte, em processo destinado à apuração ou cobrança de tributo, a interposição de algum tipo de impugnação, reclamação ou recurso, antes de seu julgamento não há sequer que se falar em dívida.
Caso se admita que o recurso administrativo, mesmo regulado por legislação específica, pudesse não ter o efeito suspensivo, viabilizando a imediata inscrição dos valores contestados como “dívida tributária” a que alude o artigo 201, haveria manifesta antinomia deste dispositivo com artigo 151, III. Implicaria o reconhecimento, por outro lado, da existência de uma espécie de “execução provisória” da dívida fiscal (isto é, sua cobrança imediata mesmo enquanto pendente julgamento de recurso regularmente interposto). A racionalidade do sistema (ou subsistema) referida anteriormente restaria prejudicada, sendo certo que o intérprete deve pautar-se em critério de interpretação que preserve o sistema como racional.[14]
5. Conclusão
A existência de defesa ou recurso administrativo interposto com fundamento em lei ou ato regulamentar que prevejam o seu cabimento atrai, necessariamente, a aplicação da causa de suspensão prevista no inciso III, do artigo 151, do CTN.
O fato de o débito ter sido inicialmente declarado em DCTF não prejudica o quanto exposto. A auto-declaração elide a necessidade de constituição da dívida por Auto de Infração. Verificado, contudo, que o débito, mesmo declarado, não é exigível (inclusive por fato superveniente à declaração) e vindo o Fisco a discordar e prosseguir na cobrança, tem o contribuinte o direito à interposição da Manifestação de Inconformidade prevista no Regimento Interno da Receita Federal (no que respeita às hipóteses previstas no artigo 174, III).
Aplicam-se à espécie as mesmas conclusões adotadas pelo Superior Tribunal de Justiça em relação aos recursos interpostos em matéria de compensação antes da alteração do artigo 74, da Lei nº 9.430/96, pela Lei nº 10.833/03, quando aquela Corte reconheceu o efeito suspensivo às Manifestações de Inconformidade interpostas em face da não-homologação do encontro de contas.
Não se mostra racional nem condizente com a natureza da dívida tributária, por outro lado, admitir o regular processamento de recurso administrativo e, concomitantemente, o prosseguimento da cobrança. O artigo 201, do CTN, garante ao contribuinte o direito de não ser cobrado antes de findo o “processo regular” de apuração da dívida, o que pressupõe o julgamento final, no âmbito administrativo, de recurso regularmente interposto e processado.
[1]“Art. 5º O Ministro da Fazenda poderá eliminar ou instituir obrigações acessórias relativas a tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal.
§ 1º O documento que formalizar o cumprimento de obrigação acessória, comunicando a existência de crédito tributário, constituirá confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do referido crédito.
§ 2º Não pago no prazo estabelecido pela legislação o crédito, corrigido monetariamente e acrescido da multa de vinte por cento e dos juros de mora devidos, poderá ser imediatamente inscrito em dívida ativa, para efeito de cobrança executiva, observado o disposto no § 2º do artigo 7º do Decreto-lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983.
§ 3º Sem prejuízo das penalidades aplicáveis pela inobservância da obrigação principal, o não cumprimento da obrigação acessória na forma da legislação sujeitará o infrator à multa de que tratam os §§ 2º, 3º e 4º do artigo 11 do Decreto-lei nº 1.968, de 23 de novembro de 1982, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983.”
[2]Dentre outras, destacam-se as decisões proferidas no AgRg no RESP nº 902.823, Min. Eliana Calmon, j. 14/10/2008, RESP nº 820.626, Min. Mauro Campbell Marques, j. 19/08/2008 e AgRg no RESP nº 888.650, Min. Luiz Fux, j. 02/10/2007.
[3] No Regimento Interno anterior, aprovado pela Portaria MF nº 30/05, a questão estava disciplinada no art. 224, I, com alguma variação de redação, mas com conteúdo semelhante.
[4] O que pode ocorrer nos casos em que a exigibilidade do tributo é inicialmente suspensa por medida judicial, que posteriormente vem a ser cassada. Nessa situação, tratando-se de débito declarado, dispõe a Fazenda Nacional do prazo de 5 anos, contados a partir da revogação da medida suspensiva (quando o crédito torna-se plenamente exigível), para promover a execução dos valores, sob pena de prescrição.
[5] “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e forma de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
[6] Dentre outras decisões, destacam-se as seguintes: acórdão CSRF/04-00.609, recurso 106-133420, Cons. Maria Helena Cotta Cardozo, j. 20/06/2007; acórdão CSRF/01-05.096, recurso 103-124112, Cons. Carlos Alberto Gonçalves Nunes, j. 18/10/2004; acórdão 102-48.887, recurso 153.122, Cons. Silvana Mancini Karam, j. 23/01/2008; acórdão 202-09.350, recurso 097.072, Cons. José Cabral Garofano, j. 02/07/1997; e acórdão 108-074.18, recurso 132.269, Cons. José Henrique Longo, j. em 11/06/2003.
[7] Direito Tributário Brasileiro, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 241.
[8]“Art. 61: Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo”
[9]A respeito, as decisões proferidas nas ADI´s nºs 1.144 (Min. Eros Grau, j. 16/08/2006), 3.255 (Min. Sepúlveda Pertence, j. 22/06/2006) e 3.645 (Min. Ellen Gracie, j. 31/05/2006).
[10]“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
(…)
III – para a obtenção de ordem lógica:
(…)
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada nocaput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;”
[11]“Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso.”
[12]Curso de Direito Tributário, 27ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 208.
[13] Decisão proferida no ERESP nº 850.332, de 28/05/2008, cujo acórdão está assim ementado:
“TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. COMPENSAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO INDEFERIDA PELA ADMINISTRAÇÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO PENDENTE. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. FORNECIMENTO DE CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITO DE NEGATIVA.
1. As impugnações, na esfera administrativa, a teor do CTN, podem ocorrer na forma de reclamações (defesa em primeiro grau) e de recursos (reapreciação em segundo grau) e, uma vez apresentadas pelo contribuinte, têm o condão de impedir o pagamento do valor até que se resolva a questão em torno da extinção do crédito tributário em razão da compensação.
2. Interpretação do art. 151, III, do CTN, que sugere a suspensão da exigibilidade da exação quando existente uma impugnação do contribuinte à cobrança do tributo, qualquer que seja esta.
3. Nesses casos, em que suspensa a exigibilidade do tributo, o fisco não pode negar a certidão positiva de débitos, com efeito de negativa, de que trata o art. 206 do CTN.
4. Embargos de divergência providos.”
[14] Sobre a racionalidade em matéria tributária, refere-se texto de Hamilton Dias de Souza – “A competência tributária e seu exercício: a racionalidade como limitação ao poder de tributar” – que, embora examinando o tema sob outro enfoque, tem ensinamentos plenamente aplicáveis à hipótese em exame, em especial quando relaciona a racionalidade com outros princípios norteadores da atividade tributária, no Brasil e no exterior, de modo que “(…) a exigência concreta que se faça alcance apenas a capacidade econômica tida pela lei como causa da imposição.” (Rev. dos Tribunais, Cadernos de Direito Tributário e de Finanças Públicas, ano 2, nº 5, out-dez/93, p. 31 e ss.).