Autor(es): Hugo Funaro
O Tratamento dos Produtos Originários do Mercosul
Advogado. Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
DEZEMBRO/2012
A Constituição Federal outorga competência ao Senado Federal, órgão de representação dos Estados e do Distrito Federal no Congresso Nacional, para estabelecer a alíquota interestadual do ICMS, certamente em razão dos potenciais conflitos federativos que cercam a sua fixação (CF, art. 155, §2º, IV). Com efeito, a função da alíquota interestadual, tendo em vista o sistema não-cumulativo característico do ICMS (CF, art. 155, §2º, I), consiste em determinar a parcela do imposto cabente ao Estado de origem (alíquota interestadual x base de cálculo) e a parcela de titularidade do Estado de destino (alíquota interna x base de cálculo – valor devido na origem) de bens, mercadorias e serviços objeto de comércio interestadual. De modo que, quanto maior a alíquota do ICMS, maior a receita do Estado de origem e menor a do Estado de destino, e vice-versa.
A Resolução SF 22/89 fixou a alíquota interestadual geral do ICMS em 12%, criando, porém, uma alíquota interestadual especial de 7% para transações realizadas a partir de Estados do Sul e do Sudeste (excetuado o Espírito Santo) com destino a Estados das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (incluído o Espírito Santo). Mais tarde, a Resolução SF 95/96 criou alíquota específica para determinados serviços de transporte.
Invocando novamente a sua competência constitucional, o Senado Federal editou a Resolução SF 13/12, estabelecendo alíquota de 4% de ICMS para produtos de origem estrangeira que não tenham sofrido processo industrial no País, ou que, embora tenham sido aqui industrializados, possuam Conteúdo de Importação superior a 40%. Foram ressalvados o gás natural, os bens e mercadorias sem similar nacional, bem como aqueles produzidos na Zona Franca de Manaus ou em conformidade com os processos produtivos previstos em leis federais para os setores de informática, automação, tecnologia da informação, assim como para as indústrias de equipamentos para TV Digital e de componentes eletrônicos semicondutores.
A criação da nova alíquota de ICMS foi justificada como instrumento para amenizar a chamada “guerra dos portos”, que estaria prejudicando a indústria nacional.[1] De fato, alguns Estados passaram a conceder desonerações do ICMS incidente no comércio interestadual de mercadorias importadas por seus portos. Nesses casos, embora mantida a alíquota nominal do ICMS (7% ou 12%, conforme o caso), havia redução da carga tributária global efetiva, pois o adquirente da mercadoria se creditava integralmente do valor do imposto destacado no documento fiscal e o deduzia do montante devido ao respectivo Estado, ao passo que o remetente recolhia ao seu Estado apenas parte do ICMS debitado na operação, em virtude de desoneração concedida no momento da apuração do saldo devedor a pagar no final do período.[2] Com a redução da alíquota interestadual a 4%, pretendeu-se reduzir, por tabela, a dimensão do incentivo passível de ser concedido, de forma desestimular as importações de produtos também fabricados regularmente no País.[3]
Portanto, constata-se que o Senado Federal reduziu a alíquota interestadual do ICMS relativamente aos produtos de origem estrangeira com o objetivo de interferir com o comércio exterior e interestadual para estimular a indústria nacional, mediante a redução dos efeitos dos incentivos concedidos pelos Estados às operações de importação.
Vale dizer, a medida adotada pelo Senado ataca uma das vertentes da chamada “guerra fiscal do ICMS”, como foi alcunhada a concessão de desonerações do imposto pelos Estados sem autorização dos demais, na forma exigida pela Lei Complementar nº 24/1975.
Sem embargo da nobreza dos fins que permeiam a Resolução SF 13/12, esta não configura meio adequado para resolver a questão. Os motivos que levam a essa conclusão foram bem expostos na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4858/DF, ajuizada pela Mesa Diretora da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, dispensando maiores elucubrações.
Em breve síntese, sustenta-se, na referida ADI que, sendo o sistema legislativo federal bicameral (CF, art. 44), a competência do Senado é excepcional e, como tal, deve ser interpretada estritamente. Por isso e considerando competir ao Senado apenas estabelecer alíquotas do ICMS aplicáveis às operações e prestações interestaduais, lhe é vedado dispor sobre outros temas que não a própria alíquota, como fez a Resolução SF 13/12, ao selecionar situações e contribuintes sujeitos a regime de alíquotas interestaduais diferenciadas do ICMS e interferir com a concessão de incentivos fiscais pelos Estados, matérias reservadas à lei complementar (CF, arts. 146, III, “a” e 155, §2º, XII, “a” e “g”).
Além disso, sustenta-se que não cabe ao Senado fixar alíquotas seletivas do ICMS, pois tal competência é unicamente do legislador estadual, na medida em que a definição da carga tributária incidente sobre a mercadoria é determinada pela alíquota interna vigente no Estado de destino e não pela alíquota interestadual (que apenas reparte as receitas entre as unidades de origem e destino). Por outro lado, o único critério admitido pela Constituição para fixação de alíquotas seletivas é a essencialidade do produto ou serviço, o que não foi respeitado pela Resolução SF 13/12, que adota como critério de distinção a origem de bens e mercadorias, o que é expressamente vedado Constituição Federal (art. 152).
Por fim, sustenta-se que o texto da Resolução SF 13/12 fere o princípio da tipicidade tributária, por não ter densidade normativa suficiente para permitir a aplicação automática da alíquota interestadual de 4%. Isso porque a determinação dos produtos sujeitos ao novo regime depende da elaboração de lista de produtos sem similar nacional pela CAMEX, além de, em relação aos produtos industrializados no País, ser necessária a expedição de normas complementares pelo CONFAZ para apuração do Conteúdo de Importação, já que a resolução não especifica os critérios a serem observados no respectivo cálculo.[4]
Os argumentos são respeitáveis e contundentes, sendo razoável a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal venha a declarar a inconstitucionalidade da Resolução SF 13/12, hipótese em que deverá ser encontrada outra maneira, mais adequada, de solucionar a chamada “guerra dos portos”, preferencialmente no bojo de normas de espectro amplo.[5]
Entretanto, independentemente do julgamento da ADI, há uma questão peculiar que deve ser enfrentada e que, conforme a interpretação que se adote, pode resultar na exclusão de determinados produtos do âmbito de incidência da Resolução SF 13/12. Cuida-se da aplicação ou não da alíquota nela prevista aos produtos originários de países integrantes do MERCOSUL. Há notícia de que o tema foi debatido no CONFAZ e houve deliberação pela aplicação indiscriminada da resolução aos produtos de origem estrangeira, inclusive os provenientes do MERCOSUL, por não constarem das exceções previstas na Resolução.
O entendimento do CONFAZ não procede. Isso porque o art. 7 do Tratado de Assunção, promulgado pelo Decreto nº 350/91, que regula o tratamento das mercadorias originárias de países do MERCOSUL prevê: “Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao Produto nacional.”
Diante do texto expresso do Tratado, os produtos originários do MERCOSUL devem ser tratados como se nacionais fossem, para fins tributários.[6] Não se cuida, pois, de assegurar apenas um tratamento não menos favorável a produtos importados, como consta de outros acordos internacionais firmados pelo País – o que poderia justificar a alíquota de 4%, por ser inferior às previstas na Resolução SF 22/89 -, mas sim de conferir aos produtos provenientes de países signatários do MERCOSUL tratamento idêntico ao dos nacionais.
Como a Resolução SF 13/12 não se aplica aos produtos de origem nacional (mas somente aos produtos considerados de origem estrangeira), por decorrência não pode a norma abranger os produtos originários do MERCOSUL. Pois, se isso ocorresse, os produtos originários de outros membros do Bloco seriam tratados de forma diferente dos produtos nacionais, em violação ao Tratado de Assunção.
Em qualquer caso, portanto, os produtos originários do MERCOSUL devem submeter-se às alíquotas interestaduais do ICMS previstas na Resolução SF 22/89 (12% ou 7%), por força do Tratado de Assunção, que prevalece sobre a legislação interna brasileira, conforme prevê o art. 98 do CTN[7], na esteira da jurisprudência dos Tribunais Superiores.[8]
[1] É o que se verifica do Parecer apresentado pelo Senador Eduardo Braga, relator do Projeto de Resolução do Senado n. 72/2010 (que redundou na Resolução SF 13/12) na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal (CAE):
“Os proponentes, na justificação do PRS nº 72, de 2010, chamam a atenção para as particularidades na repartição das receitas de ICMS em operações interestaduais. A partilha do imposto entre o Estado de origem e o Estado de destino das mercadorias e serviços é levada a cabo por meio da implantação de alíquotas interestaduais diferenciadas. Essa sistemática alcança também as mercadorias de procedência estrangeira, o que abre caminho para que os Estados, de acordo com sua conveniência, reduzam drasticamente a incidência do ICMS, atraindo para seu território empresas especializadas em adquirir produtos estrangeiros para revenda (tradings) ou mesmo produtores nacionais que, diante dos incentivos, optem por importar maquinários e outros bens de produção.
A reiteração dessa prática por parte das unidades federadas pode ter como consequência o sucateamento da indústria nacional. A perdurar o incentivo indiscriminado e incontrolado às importações, a tendência é que, cada vez mais, se dê preferência ao produto alienígena em detrimento do brasileiro.
O PRS nº 72, de 2010, tenta corrigir essa distorção deslocando a tributação de ICMS dos bens e mercadorias importados do exterior exclusivamente para o Estado em que se der o consumo, independentemente do local por onde o produto ingressar no País. (…)
De forma a evitar a redução radical e abrupta da alíquota em questão para zero, propomos sua fixação em 4% (quatro por cento), como razoável meio termo entre a necessidade do País de controlar a entrada indiscriminada de produtos estrangeiros e a possibilidade de permanência, ainda que residual, dos incentivos concedidos pelos Estados à atividade de importação.
O substitutivo estipula que a alíquota de 4% incidirá sobre bens e mercadorias importados do exterior que, após seu desembaraço aduaneiro, mesmo submetidos a processo de industrialização, resultem em mercadorias ou bens com Conteúdo de Importação superior a 40% (quarenta por cento). (…)”
[2]Exemplificando, se um importador beneficiário de crédito presumido concedido pelo Estado A no importe de 50% do imposto debitado na operação interestadual sujeita à alíquota de 12% remetesse mercadoria no valor de R$ 100,00 ao Estado B e posteriormente a mesma mercadoria fosse lá revendida a R$ 200,00, mediante a aplicação de alíquota interna de 18%, teríamos, ao final, o recolhimento global de R$ 30,00 e não de R$ 36,00, como seria de rigor, caso não tivesse havido qualquer incentivo. Veja-se:
– Valor do ICMS devido ao Estado A: R$ 12,00
– Valor efetivamente cobrado pelo Estado A: R$ 6,00
– Valor do crédito fiscal de ICMS no Estado B: R$ 12,00
– Valor do ICMS no Estado B: R$ 24,00 (R$ 36,00 – R$ 12,00)
– Carga total do ICMS: R$ 30,00 (R$ 6,00 + R$ 24,00)
[3]Utilizando-se os mesmos dados do exemplo constante da nota anterior, porém com alíquota interestadual de 4%, a carga global do ICMS sobe de R$ 30,00 para R$ 34,00.
– Valor do ICMS devido ao Estado A: R$ 4,00
– Valor efetivamente cobrado pelo Estado A: R$ 2,00
– Valor do crédito fiscal de ICMS no Estado B: R$ 4,00
– Valor do ICMS no Estado B: R$ 32,00 (R$ 36,00 – R$ 4,00)
– Carga total do ICMS: R$ 34,00 (R$ 2,00 + R$ 32,00)
[4]O Ajuste SINIEF 19/12 e a Resolução CAMEX 79/12, editados posteriormente ao ajuizamento da ADI, comprovam a falta de tipicidade/insuficiência de densidade normativa da resolução do Senado, pois os órgãos administrativos puderam definir a matéria da forma que julgaram mais conveniente, o que, em última análise, significa terem sido eles (e não o Senado) que definiram o campo da alíquota de 4%.De fato, conforme já decidiu o STF, a lei deve definir os critérios a serem observados pela Administração na determinação de hipóteses sujeitas a determinada norma de incidência do ICMS (RE 240.186-1 – Pleno – Rel. Min. Ilmar Galvão – J: 28/06/2000). No caso, porém, não há parâmetros objetivos a serem observados pelo CONFAZ na determinação do Conteúdo de Importação, o que é comprovado, por exemplo, pelos §§ 1º e 2º da Cláusula Quarta do Ajuste SINIEF 19/12, que estabelecem a forma de cálculo das parcelas importada e nacional da mercadoria comercializada, determinando sejam considerados os tributos incidentes. Veja-se que, à falta de critérios da Resolução SF 13/12, havia opção para o CONFAZ considerar ou não os tributos para efeito de apuração do quociente entre a parcela nacional e a importada, discricionariedade incompatível com o princípio da legalidade, na medida em que interfere com a equação do Conteúdo de Importação e, consequentemente, com a alíquota do ICMS. Da mesma forma, à CAMEX foi dada ampla liberdade para definir como bem quisesse os critérios para apuração de similaridade, para fins de determinação dos produtos excepcionados da alíquota do ICMS de 4%. A tal ponto de ter sido restringida a possibilidade de reconhecimento de similaridade aos produtos constantes apenas de certos capítulos e códigos da TEC constantes do inciso I do art. 1º Resolução CAMEX 79/12, como informa a CAMEX (http://www.camex.gov.br/conteudo/exibe/area/1/menu/76/Resolução%20nº%2079/2012%20-%20Lista%20de%20Bens%20sem%20Similar%20Nacional).
[5]Encontra-se em discussão proposta de unificação das alíquotas em geral do ICMS, tendo como contrapartida a criação de fundos de compensação e de desenvolvimento com recursos orçamentários e financeiros disponibilizados pela União. Cogita-se, ainda, a flexibilização do quorum de deliberação do CONFAZ para que desonerações do ICMS possam ser concedidas por decisão majoritária das unidades federadas, prevendo-se sanções eficazes para os entes que legislarem unilateralmente sobre a matéria, o que tende a substituir a “guerra fiscal” pela “competição fiscal lícita”, praticada em vários países desenvolvidos.
[6]As regras de origem do Mercosul foram consolidadas no Decreto 5.455/2006.
[7]“Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.
[8]STF: “1. A isenção de tributos estaduais prevista no Acordo Geral de Tarifas e Comércio para as mercadorias importadas dos países signatários quando o similar nacional tiver o mesmo benefício foi recepcionada pela Constituição da República de 1988. 2. O artigo 98 do Código Tributário Nacional "possui caráter nacional, com eficácia para a União, os Estados e os Municípios" (voto do eminente Ministro Ilmar Galvão). 3. No direito internacional apenas a República Federativa do Brasil tem competência para firmar tratados (art. 52, § 2º, da Constituição da República), dela não dispondo a União, os Estados-membros ou os Municípios. O Presidente da República não subscreve tratados como Chefe de Governo, mas como Chefe de Estado, o que descaracteriza a existência de uma isenção heterônoma, vedada pelo art. 151, inc. III, da Constituição. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE 229.096/RS – Rel. Min. Ilmar Galvão – J: 16/08/2007)
STJ: “(...)Como os tratados internacionais têm força de lei federal, nem os regulamentos do ICMS nem os convênios interestaduais têm poder para revogá-los. Colocadas essas premissas, verifica-se que a Súmula 575 do Supremo Tribunal Federal, bem como as Súmulas 20 e 71 do Superior Tribunal de Justiça continuam com plena força.´ (AgRg no AG n.º 438.449/RJ, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 07.04.2003. 4. O Tratado do Mercosul, consoante o disposto no art. 7º, do Decreto n.º 350/91, estabelece o mesmo tratamento tributário quanto aos produtos oriundos dos Estados-Membros em matéria tributária e não limita que referido tratamento igualitário ocorra somente quanto aos impostos federais, de competência da União.” (RESP 480.563/RS – Rel. Min. Luiz Fux – J: 06/09/2005)