Autor(es): Hamilton Dias de Souza
PEC é inconstitucional, seja por efeitos deletérios à autonomia dos estados e municípios, seja por tratar-se de tributo material e formalmente pertencente à União.
Cuida-se de comentar os diferentes aspectos do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), objeto da PEC n. 45/2019, que conduzem à sua inconstitucionalidade. Em síntese, a proposta recém aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados prevê a criação do referido imposto, em substituição ao ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS.
Caso aprovada, o IBS incidirá sobre todas as utilidades destinadas a consumo, inclusive importadas. Será nacional e instituído por lei complementar exauriente do todos os seus aspectos. Estados e Municípios poderão alterar alíquotas preestabelecidas pelo Senado, embora com as restrições abaixo examinadas. Não recairá sobre investimentos e exportações. Suas alíquotas serão uniformes para todos itens e em todas as esferas, vedados benefícios fiscais de qualquer espécie. A administração e fiscalização serão centralizadas por Comitê Gestor que, dentre outras incumbências, regulamentará o tributo e operacionalizará partilha de receitas entre União, Estados e Municípios, na forma de lei complementar.
Segundo a PEC, deve haver transição gradativa do atual para o novo modelo. Os tributos citados serão eliminados à medida em que aumentado progressivamente o IBS, nos seus dez primeiros anos de vigência. Os dois primeiros anos serão de “teste”, admitindo-se modificações ao sistema. E, durante cinquenta anos, Estados e Municípios que perderem arrecadação receberão compensações correspondentes.
Embora aparente ser simples e moderno, o IBS proposto suscita perplexidades, que abordaremos em duas partes. Neste primeiro artigo, serão examinados os seus vícios federativos. No próximo trabalho, serão enfrentados os problemas de desproporcionalidade e insegurança jurídica resultantes da complexidade da proposta.
Tempos como os atuais, de desconforto generalizado quanto às dificuldades do País, acentuam a necessidade de reformas. É natural que haja inconformismo em relação ao modo rígido com que a Constituição trata temas caros à identidade institucional do Brasil, como a questão federativa. Torna-se atraente a “razão de Estado”1 e os agentes políticos passam a flertar com a flexibilização de limites constitucionais, como os do art. 60, §4º, da CF/88. De fato, argumenta-se que este não deva embaraçar modificações necessárias à resolução dos problemas da Nação. Por exemplo, é o que afirma o parecer pela admissibilidade do IBS: “a amplitude conferida às cláusulas pétreas… não representa, por si só… engessamento da ordem constitucional, obstando a introdução de qualquer mudança de maior significado”. Tal discurso é sedutor.
Porém, é justamente em momentos de adversidade que as cláusulas pétreas devam ser encaradas com seriedade. Afinal, em Direito do Estado, regras inconstitucionais geram esqueletos, isto é, custos institucionais expressivos, que, bem ou mal, serão socializados entre os cidadãos no futuro. Por isso, deve-se ter cuidado para que alterações normativas feitas a toque de caixa não resultem em prejuízos ainda maiores para o País.
Nossa tradição jurídica distingue os poderes constituintes entre originário e derivado. O primeiro é “inicial, ilimitado (ou autônomo) e incondicionado”, pois cria nova Constituição. Já o segundo, visto como instituído e subordinado ao primeiro, sujeita-se às limitações constantes do texto constitucional23.
Daí o Min. Ayres Britto afirmar que o “Poder Constituído” é “e sempre será o poder de fazer o menos sem nunca chegar a fazer o mais”, pois “detém a competência para reformar a Constituição… mas não… para trocar essa Constituição por outra”4.
Portanto, “embora as constituições” existam “para durar no tempo, a evolução dos fatos” pode “reclamar ajustes”. Para prevenir o “engessamento” nefasto do “texto constitucional”, “o próprio poder constituinte originário” permite que o poder “por ele instituído” modifique “a Lei Maior”5. O que se aceita é que “a Constituição seja alterada… com a finalidade de regenerá-la”, mas deve-se “conservá-la na sua essência”, mediante eliminação ou adaptação de normas que não mais se justifiquem ou criação de outras “que revitalizem o texto”, para que cumpra adequadamente a sua função6.
Afinal, a CF/88, por ser rígida7, afirma a sua própria supremacia, proibindo que se disponha “em sentido contrário ao texto” e dispondo de mecanismos de controle dos atos legislativos (inclusive Emendas Constitucionais8), “como garantia real da superlegalidade das normas constitucionais”9. Os limites que disso resultam encontram-se indicados no art. 60, §4º, da CF/88. Impede-se deliberação sobre proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa do Estado, o voto, a separação dos Poderes e as garantias individuais. Isso, para proteger o núcleo duro das instituições ou, como ensina José Afonso da Silva, o seu “núcleo imodificável”10.
Daí o STF entender que as ditas cláusulas pétreas delimitam “o que vem a ser a função própria de uma revisão e o que seria já convolação em Constituição diferente”, demarcando “tensão… entre transformação e subsistência e entre aquilo que se oferece mutável e aquilo que imprime caráter e razão de ser à Constituição”, de modo que “revisão consiste em adotar preceitos sem bulir com princípios”11.
Nesse quadro, importa saber o que seria a dita tendência a abolir “a forma federativa de Estado”, “os direitos e garantias individuais”, dentre outros elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito. José Afonso da Silva acentua que “o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’ (…)’”. Mais do que isso, “a vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação”. É dizer: “basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas ‘tendentes’, diz o texto), para a sua abolição”12.
Nesse sentido, como salientado em trabalhos prévios, “a interpretação restritiva da expressão tendente’ não parece a melhor”, pois, sob a ótica do sistema, o mais razoável é entender que estão proibidas quaisquer emendas que não apenas impliquem abolir, mas também amesquinhar, os fundamentos do Estado indicados no art. 60, §4º, da CF/8813. Consequentemente, PEC com vícios dessa espécie não pode sequer ser submetida a votação, podendo os integrantes do Congresso Nacional, inclusive, impedir judicialmente deliberação a respeito14. E, na hipótese de ser votada e aprovada, a norma produzida nasce inconstitucional, ficando sujeita a controle pelo Poder Judiciário.
Tais premissas conduzem à inconstitucionalidade da PEC examinada, pois, nas palavras de Humberto Ávila, “são precisamente esses pressupostos que o novo imposto desconsidera. Ele será instituído por uma lei complementar aprovada pelo Congresso Nacional, e esta suprimirá o poder de os entes federados decidirem se e como instituem os seus impostos (…) A rigor, as competências tributárias, traduzidas por faculdades atribuídas aos entes federados para decidir tributar ou não tributar e para decidir como tributar, serão suprimidas em favor de uma alíquota única. Nem mesmo bens ou serviços essenciais… poderão ser tratados de forma distinta”15. Inúmeros outros estudiosos comungam de tal entendimento, dentre os quais Everardo Maciel16, Fernando Facury Scaff17, Heleno Torres18, Kyoshi Harada19, Ricardo Lodi20, Roberto Wagner21 e Tathiane Piscitelli22, por exemplo. As razões de incompatibilidade da PEC com o Pacto Federativo serão detalhadas abaixo.
Como visto, é inadmissível emenda que “desvirtue o modo de ser federal do Estado criado pela Constituição”, pautado na “organização descentralizada” e na rígida “repartição de competências entre o governo central e os locais”23. De fato, tanto a doutrina24 quanto o STF afirmam que a “forma federativa de Estado” não pode “ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou”25. E, no caso da CF/88, “a repartição de competências e de receitas tributáriasconfigura[m] um dos pilares da autonomia dos entes políticos”26, pois “consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito”27. Por isso, nos dizeres do Min. Velloso, “não pode emenda constitucional suspendê-la[s] ou afastá-la[s], porque, se o fizer, ofenderá o pacto federativo, enfraquecendo-o, pelo que é tendente a aboli-lo”28.
Afinal, como enfatizado pelo Min. Gilmar Mendes, “de nada adianta o zelo na partilha de competências constitucionais, entre os diferentes entes federativos,se essa repartição não é acompanhada da divisão de recursos próprios e suficientes para fazer frente às diversas tarefas que lhes foram conferidas pelo Poder Constituinte. As competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício”29. Em outras palavras, se a CF/88 dá aos entes fins a serem perseguidos, ela também lhes confere os meios para tanto. E estes meios são elementos constitutivos do Pacto Federativo.
Assim, o equilíbrio inaugural da composição orçamentária dos entes, formado por recursos próprios oriundos de competências impositivas exclusivas combinados com receitas divididas entre eles, deve ser mantido, na medida em que é condição para o exercício da autonomia concebida pela Assembleia Constituinte. É dizer: o “mix” de receitas próprias e alheias, em sua concepção originária, é parte da “forma federativa de Estado” pretendida pela CF/88. Desse modo, não pode tal conjunto ser desfigurado, retirando-se dos Estados e Municípios fatos geradores que lhes foram conferidos pela CF/88 originária e transferindo-os para a União Federal, pois isso implica supressão de parte substancial de seu poder de instituir impostos próprios30. Se o fizer, o Constituinte Derivado abandonará a racionalidade inaugural do autofinanciamento estatal e, com isso, da própria autonomia dos entes31 32.
Noutros termos, “o sistema… deixaria de ser (…) rígido”, que “é a parte onde se apoia o sistema federativo brasileiro”, tornando-se flexível. Com efeito, seria retirada dos entes parte de sua autonomia original. Por tal razão, “emendas que veiculem tais disposições tendem a abolir a Federação”33. Como ensina a Min. Ellen Gracie, “para que a autonomia política concedida pelo constituinte aos entes federados seja real, efetiva, e não apenas virtual, cumpre que se preserve com rigor a sua autonomia financeira”, toda ela alicerçada na “repartição de competências e de receitas tributárias”34.
Enfim, é a competência tributária privativa que permite a cada ente instituir tributos, graduar suas alíquotas em razão da política fiscal desejada e autogerir-se independentemente da vontade e interferência dos demais.
No quadro acima, a inconstitucionalidade da PEC n. 45/2019 deriva de violação concreta ao Pacto Federativo. Afinal, retira-se dos Estados e Municípios competência para tributar como melhor lhes pareça o consumo, para transferi-la à União. Ora, num modelo em que 43% da arrecadação dos Municípios e 88% da arrecadação dos Estados35 fica nas mãos da União, como se pode sustentar não ter havido enfraquecimento de suas autonomias?
Alguns objetam que o IBS aventado é constitucional, pois já houve “extinção de tributo” em reformas anteriores, como o IVVC (municipal) e o ICMS-Exportação (estadual)363738. Tais exemplos são impróprios. No primeiro, o tributo que recaía apenas sobre o varejo de combustíveis. No segundo, somente as exportações deixaram de ser tributadas. É dizer: essas modificações não afetaram o núcleo das autonomias locais. Diferentemente, as alterações pretendidas pela PEC n. 45/2019 comprometerão a capacidade de autofinanciamento (autodeterminação) de Estados e Municípios.
Objeta-se, ainda, que o IBS será “imposto nacional”, pois será instituído por lei complementar com quórum qualificado de aprovação39. O argumento, todavia, é formal e materialmente enganoso. Afinal, complementares são aquelas leis designadas pelo texto constitucional para tratar de determinados temas, que, por sua relevância, exigem “maioria absoluta” do Congresso (CF/88, art. 69)40. Logo, quaisquer questões, e não apenas as de interesse nacional, podem ser objeto desse veículo normativo, bastando, para tanto, que a CF/88 assim o imponha.
Em matéria tributária, há leis complementares de caráter nacional e federal. Nacionais são aquelas sobre temas que requerem tratamento uniforme em todo o País, como “normas gerais de direito tributário” para delimitar o âmbito de validade do poder tributante dos entes (CF/88, art. 146). Já as federais são relativas a assuntos exclusivos da União, como os empréstimos compulsórios e impostos residuais de sua titularidade (CF/88, arts. 148 e 154). Assim, não é o quórum, mas a natureza da matéria, que adjetiva de nacional a lei complementar: se o interesse for de todos os entes, será nacional; se for exclusivo da União, será federal. Por isso, a instituição do IBS pela via de lei complementar, por si só, não lhe retira o caráter federal.
A propósito, se se tratasse de lei complementar “nacional”, esta criaria apenas normas gerais sobre o novo tributo (CF/88, art. 146), inclusive no que respeita aos seus aspectos administrativos (CF/88,
art. 24, I). Afinal, nesse campo, cabe ao Congresso somente a “definição de bases ou princípios”, garantindo-se aos legislativos estaduais e municipais amplos poderes para “densificação” das diretrizes centrais41 e “adequação… às suas peculiaridades”42, no exercício de sua autonomia. Só é dado ao Congresso descer a pormenores nos limites dos interesses próprios da União. E, no caso, como o regramento do IBS será exaurido por lei da União, formalmente, o imposto é federal.
Tal constatação confirma-se pela dimensão material do IBS. Instituir tributo é legislar substancialmente sobre ele, “mediante a descrição” de “suas respectivas hipóteses de incidência”43. No caso do IBS, isso será feito pelo legislativo federal. Mas não é só. A iniciativa para o projeto de lei pertencerá ao Presidente, bem como a sanção e o veto. O regulamento será editado pelo Comitê Gestor, embora tal competência seja do Presidente da República (CF/88, art. 84). As ações sobre o imposto serão julgadas pela Justiça Federal, sem qualquer atuação da Justiça Estadual. Enfim, toda a estrutura material do IBS remete a poderes da União, daí ele ser federal. Isso não se altera por haver partilha do produto arrecadado, pois, se assim fosse, IR e IPI (cujos produtos sempre foram distribuídos aos demais entes) seriam considerados “tributos nacionais”, e não o são.
Por fim, registre-se que a competência reservada aos Estados e Municípios para a determinação de suas alíquotas é residual. Primeiro, porque eventual aumento ou redução deverá ser uniforme para todos os itens, o que, por si só, reduz a margem para calibração da carga tributária. Segundo, porque a redução por parte dos Estados e Municípios não poderá implicar diminuição proporcional das chamadas “alíquotas singulares de referência” fixadas pelo Senado Federal44. Tal circunstância mostra que, na prática, será remota a possibilidade de modulação do IBS, sob pena de comprometimento das finanças locais.
Ademais, o próprio uso concreto dessa competência pelos entes é duvidoso. De um lado, não é sequer razoável imaginar que os Estados e Municípios tenham capacidade econômica de suportar eventual redução generalizada de carga tributária, dada a sua combalida situação. De outro, não há mecanismos que lhes permitam excepcionar certos itens ou setores, como aqueles com baixas margens de lucro, sendo improvável que haja liberdade suficiente para quaisquer majorações. Como a tributação é concentrada no destino, providências desse tipo poderão implicar fuga de mercados consumidores, em busca de melhores preços. Exemplo: imagine-se o que ocorreria com os “postos de gasolina” de determinado município, se sua alíquota fosse mais alta que a das municipalidades vizinhas.
Certamente, os consumidores abasteceriam seus veículos nas redondezas. O mesmo aconteceria com inúmeros outros itens sensíveis a pequenas variações de preço, como alimentos, vestuário e serviços de menor complexidade. Tudo a demonstrar que a prerrogativa de alteração de alíquotas por Estados e Municípios é mais formal do que substancial. Na realidade, trata-se apenas de resquício de competência (rectius, autonomia) deixado pela PEC n. 45/2019 aos entes.
Em suma, seja por seus efeitos deletérios à autonomia dos Estados e Municípios, seja por tratar-se de tributo material e formalmente pertencente à União, a PEC n. 45/2019 é inconstitucional, pois as alterações nela propostas “reduzem substancialmente a autonomia dos entes federados e implicam amesquinhamento da federação”45.
————————————-
1 Designa-se por “razão de Estado” o conjunto de discursos e práticas que se amparam na premissa de que a sustentação do Estado seria exigência de tamanha importância que os governos, para garanti-la, poderiam violar normas jurídicas, políticas, morais e econômicas consideradas imperativas.
HAMILTON DIAS DE SOUZA – Advogado, sócio fundador da Advocacia Dias de Souza e da Dias de Souza Advogados Associados, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).