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Artigos - 17/08/23

Hamilton Dias de Souza publica artigo sobre a PEC 45/2019, que trata da reforma tributária

Veículo: CONJUR

A PEC 45/2019, já aprovada pela Câmara dos Deputados, foi recebida pelo Senado, havendo a estimativa de que seja examinada e votada até o final de 2023. Em síntese, a proposta tem por objetivo substituir os atuais ICMS (dos estados), ISS (dos municípios) e IPI, PIS e Cofins (da União), por um Imposto sobre Bens e Serviços, de competência “comum” aos entes descentralizados, bem como por uma Contribuição sobre Bens e Serviços (fusão do PIS e da Cofins) e um Imposto Seletivo sobre itens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, estes últimos de competência federal, sem prejuízo de outras alterações pontuais, por exemplo, em matéria de IPVA, ITCMD e IPTU.

Especificamente no que se refere aos atuais tributos sobre o consumo, o que se prevê é a implementação de um sistema aparentemente dual, bipartido entre o IBS (estados e municípios) e a CBS (União). Estes incidiriam sobre praticamente “todos” os bens e serviços, seriam devidos aos entes de destino, teriam estruturas e legislações muito similares e seriam “harmonizados” por meio da cooperação entre a Receita Federal (CBS) e o Conselho Federativo do imposto (artigo 156-B, §5º). Ambos teriam alíquotas padrão, reduzida e zero, estas últimas apenas para itens especificados na própria CF/88 e/ou na lei complementar instituidora dos novos gravames.

Ocorre, todavia, que o texto a ser discutido no Senado Federal prevê um sistema que não é verdadeiramente dual, pois apresenta clara vocação à unicidade, da qual decorrem características que tendem a comprometer a autonomia financeira dos estados e municípios, o que, na prática, pode macular a Federação, afetando um dos pilares de nosso sistema constitucional, como se tentará demonstrar a seguir.

1. Insuficiência de poderes de estados e municípios em matéria de tributação do consumo
Em nosso sistema, a competência tributária é a prerrogativa constitucional de um ente para instituir tributo. Ela envolve não só a capacidade administrativa de arrecadá-lo e fiscalizá-lo, mas, em especial, o poder de legislar materialmente sobre o tributo e de defini-lo em seus aspectos fundamentais. Ou seja, não há competência tributária autêntica se o suposto titular do tributo não tem autonomia para legislar sobre o mesmo, criando-o ou modificando-o, sempre que isso for necessário ou conveniente.

Assim, para que fosse realmente dual, o sistema proposto teria de ser suficientemente descentralizado, e não o é. Afinal, o IBS (supostamente subnacional) seria instituído não por leis estaduais / municipais, mas por lei complementar (que se insere no processo legislativo federal), com praticamente a mesma estrutura da CBS, o que inclui a disciplina de fatos geradores, bases de cálculo, determinação de alíquotas, regimes especiais e favorecidos de tributação e sujeição passiva. Temas esses que são todos definidos pelos entes descentralizados por leis próprias, no que concerne aos atuais ICMS e ISS.

Não se diga, aliás, que, por se tratar de um tributo de competência conjunta dos estados e municípios, ele poderia ser diretamente instituído por lei complementar, com suposto caráter nacional. Afinal, nacionais são aquelas leis complementares editadas para estabelecer normas gerais e condicionar o exercício da competência tributária dos entes federativos, a ser exercida por leis próprias. Quando a lei complementar institui tributo (p.ex., empréstimo compulsório e competência residual da União), ela não é de caráter nacional, mas apenas um diploma sujeito a rito mais rigoroso de tramitação, diante da excepcionalidade do tributo de que cuida, o qual é de titularidade (competência) do ente responsável pela edição do diploma correspondente.

Nesse exato sentido, o que fazem os defensores da PEC 45/2015 é jogar com palavras, chamando de subnacional um imposto que será instituído pela União (Congresso Nacional), por veículo normativo da União, e gerido por um órgão criado por esse mesmo diploma e que só poderá atuar nos termos ali previstos, os quais, necessariamente, terão de se adequar às regras da CBS, de competência federal. Esse órgão teria o poder de editar normas infralegais, uniformizar interpretações em caráter vinculante, arrecadar, compensar e partilhar o IBS, sem qualquer margem para atuação independente por parte de cada estado, município e Distrito Federal.

Ademais, ao que tudo indica, o IBS e a CBS serão criados por uma mesma lei complementar, o que evidencia que a conformação dos elementos fundamentais do IBS será condicionada pelos interesses da União Federal atinentes à CBS. E, mesmo que os tributos sejam instituídos por leis complementares e em momentos distintos, esse condicionamento existirá. Afinal, o texto aprovado exige que os tributos em questão sejam estruturalmente uniformes e harmônicos entre si. Logo, se a CBS for instituída primeiro, a futura criação do IBS será pautada pela estrutura dada à contribuição pela respectiva lei complementar; e, se o IBS for instituído primeiro, ele terá de ser (re)adequado ao que dispuser a lei instituidora da CBS, naquilo em que ela dispuser de modo diverso.

Assim, atividades que atualmente são realizadas por cada estado e por cada município, sem a interferência de qualquer poder externo que os possa impedir de agir segundo seus interesses e necessidades, passariam a ser condicionadas por lei federal e feitas por meio de um órgão colegiado, o qual, obviamente, teria existência autônoma e “membros” com inclinações, valores e “padrinhos” variados. É dizer: o que hoje pode ser decidido individualmente, passará a depender de acordo, seja no âmbito do Congresso Nacional, seja no âmbito de um novo órgão administrativo, cujo funcionamento não se sabe exatamente como será. E, nas divergências que certamente surgirão, as minorias deverão curvar-se às maiorias.

Para transmitir a sensação de que alguma decisão poderá ser tomada pelos estados e municípios sozinhos, o texto previu que eles irão determinar a alíquota de IBS aplicável aos itens destinados aos respectivos territórios. Porém, até esse poder é questionável, pois só poderá ser exercido após o Senado Federal definir a alíquota de referência para cada esfera federativa e é de aplicabilidade reduzida, como detalhado adiante.

Noutras palavras, em comparação com o que hoje vigora, os estados e os municípios perderão o poder de legislar sobre tributos que lhes sejam realmente próprios, tendo de se contentar com uma espécie de imposto em condomínio, inédita em nossa tradição constitucional e em relação à qual ficarão a depender de acordo, sujeitando-se à maioria, em caso de divergência. Disso decorre que há efetiva perda de poder em matéria de tributação do consumo, o que implica redução da autonomia financeira.

Por isso, diferentemente do que se tem propalado, o modelo aprovado pela Câmara dos Deputados não é tão distinto do IVA único e federal previsto na redação original da PEC 45, pois se apresenta com falsa dualidade, pretendendo justificar uma autonomia que, no entanto, é meramente formal.

Note-se, a propósito, que, nas grandes federações que enfrentaram o desafio de reformar seus antigos sistemas de tributação do consumo, sempre se respeitou a autonomia das ordens parciais de governo, seja por adesão destas a um sistema harmonizado (como no Canadá), seja pela prevalência de sua vontade na gestão do tributo em comum (2/3 dos votos para estados, contra 1/3 para a União, na gestão do IVA indiano), por exemplo.

Além disso, mesmo nos países em que a tributação do consumo é “federalizada”, existem modos para assegurar autonomia autêntica aos entes parciais. De fato, na Austrália, cujo IVA é de competência da União, a quase totalidade da arrecadação pertence aos estados. Já na Alemanha, além de os estados descentralizados serem titulares de quase a metade da arrecadação do IVA, eles participam diretamente do processo legislativo atinente ao tributo, pois o “Senado”, que tem o poder de impedir (ou não) alterações relacionadas ao tributo, é composto por representantes diretos dos estados, livremente escolhidos e demitidos a qualquer tempo por estes.

Por fim, não é demais repetir que a autonomia financeira não se limita a saber “o que” ou “quanto” será recebido pelo ente federado, razão pela qual a partilha da arrecadação do IBS não é suficiente para preservar o pacto federativo. Ela também envolve saber “como” ele irá ter o direito de receber esses montantes e “em que medida” ela terá o poder exercer poder nessa matéria. Como afirmar que os estados e municípios poderão tomar decisões sobre questões importantes sem serem substancialmente influenciados uns pelos outros ou pela União?

Por essas razões, a PEC 45/2019 retira poder dos estados para dispor sobre tributação do consumo e para decidir sozinhos sobre recursos suficientes para a execução de seus objetivos, o que esbarra na proibição a emendas que pretendam “modificar qualquer elemento conceitual da Federação”, dentre os quais a preservação de competências tributárias privativas e suficientes dos entes subnacionais, que não podem ser amesquinhadas, por serem “pilares da autonomia dos entes políticos.

2. Falso poder dos entes descentralizados para fixar suas alíquotas do IBS
Prova do esvaziamento quase total dos poderes de estados e municípios em matéria de tributação sobre o consumo é que todas as questões administrativas atinentes ao IBS serão decididas pelo Conselho Federativo. A única competência unilateral que lhes restará refere-se à escolha da alíquota padrão a ser observada em seus territórios, aplicável a todos os itens que não se enquadrem nas alíquotas reduzida ou zero.

No entanto, essa é uma liberdade marginal, pois a alíquota terá de ser a mesma para todos os produtos e serviços, o que limita as situações em que será possível aumentá-la ou diminuí-la. Por exemplo, mudar as taxas para todos os produtos ao mesmo tempo pode prejudicar o consumo (aumento) ou afetar negativamente a arrecadação (redução), comprometendo a prestação dos serviços públicos (race to bottom).

De fato, para os itens que são insumos de outras cadeias, o IBS não afetaria os entes de passagem, pois, na prática, eles só receberão valores correspondentes ao IBS relativo ao consumo (final) em seus territórios. Já em relação aos itens prontos para consumo, estes sim de interesse arrecadatório para os estados e municípios, aumentos exagerados na alíquota podem levar à redução do consumo local, enquanto reduções drásticas podem levar à perda de recursos essenciais para os governos locais.

Portanto, a capacidade de mudar essas taxas seria muito limitada, devido à grande dificuldade que os entes teriam para calibrar o imposto a fim de atender às necessidades e interesses políticos locais. E “as competências constitucionais esvaziam-se sem as condições materiais para o seu exercício“.

3. Dúvidas quanto ao funcionamento do Conselho Federativo
Como visto, caberia a um Conselho Federativo editar normas infralegais do IBS e uniformizar interpretações em caráter vinculante, arrecadar, compensar e distribuir o imposto aos seus titulares e dirimir questões suscitadas nos processos administrativos envolvendo o tributo. Os entes federativos só teriam voz nesse órgão no âmbito da respectiva assembleia geral, com votos distribuídos igualmente entre o conjunto dos estados/DF e o conjunto dos municípios/DF.

O texto aprovado pela Câmara dos Deputados prevê que o Conselho Federativo terá 54 assentos, 27 ocupados por representantes de cada estado e pelo DF e 27 representantes do conjunto dos municípios/DF, 14 dos quais serão eleitos pelo voto de cada município (voto per capita) e 13 pelo voto de cada município, ponderado pela respectiva população. As deliberações serão aprovadas se obtiverem a maioria absoluta dos votos dos representantes dos estados e dos municípios, desde que a maioria dos representantes dos estados responda por mais de 60% da população nacional.

Todavia, não se sabe como será feita a eleição propriamente dita dos membros desse Conselho, além de os critérios de representatividade e de maioria, que tentam combinar o sistema igualitário com o proporcional, serem de difícil administração, podendo gerar impasses e coalizões pouco republicanas. Por isso, o Conselho deveria receber um maior detalhamento constitucional, pois não se pode delegar ao legislador complementar a disciplina de algo que materialmente redesenha as competências dos entes subnacionais, sem critérios de controle que permitam aos interessados defender-se judicialmente.

Por fim, como visto, o Conselho terá o dever de atuar em conjunto com a União atuarão para harmonizar normas infralegais, interpretações e procedimentos relativos ao imposto e à contribuição. Ou seja, mesmo em matérias administrativas o IBS ficará a reboque dos interesses da União Federal. Nesse contexto, restariam aos estados e municípios apenas “fiapos” de autonomia.

4. Conclusão
Pelo exposto, a PEC 45/2019 concentra o poder de instituir tanto a CBS quanto o IBS na União, enquanto o que resta aos estados e municípios são competências marginais. Essa centralização contradiz a dualidade que tem sido erroneamente atribuída ao modelo proposto, além de amesquinhar a autonomia financeira desses entes, ao arrepio do art. 60, §4º, da Constituição. Nem mesmo a suposta liberdade para modificar as alíquotas do IBS se sustenta, sendo meramente formal, pois seria quase nula a margem para aumentos e diminuições.

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