Veículo: Revista Consultor Jurídico
Autor(es): Hamilton Dias de Souza e Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho
Muito se tem discutido sobre possíveis virtudes e vícios da regra relativa ao fator previdenciário, apelidada pela mídia e pela sociedade em geral como “regra do 85/95”. Nesse debate, porém, não se pode olvidar uma questão prévia cujo deslinde é fundamental para a validade do novo fator previdenciário: seria a Medida Provisória 664/14 veículo normativo adequado?
A questão se põe em face do disposto no artigo 62 da Constituição Federal, que só admite medidas provisórias, com força de lei, em caso de relevância e urgência. Isso porque, num regime marcado pela separação de poderes, a função de expedir leis é do Poder Legislativo. Ao Poder Executivo cumpre assegurar a fiel execução das leis e ao Poder Judiciário o exame de sua legitimidade. Há situações, porém, em que não é possível aguardar o regular andamento e conclusão do processo legislativo comum para que certos fatos sejam juridicamente disciplinados, pois a demora pode afetar irremediavelmente direitos que requerem proteção.
As medidas provisórias servem justamente para que o Poder Executivo possa normatizar cautelarmente, ou seja, de forma imediata e em caráter precário, determinadas situações fáticas (caso) cuja elevada importância (relevância) e potenciais efeitos danosos para a coletividade (urgência) torne inviável aguardar o prazo de tramitação de projeto de lei, conforme orientação do Supremo Tribunal Federal (ADI 293 MC/DF). Após, deve o Poder Legislativo dar a palavra final sobre o assunto, convertendo em lei ou rejeitando a medida provisória.
Por isso, qualquer medida provisória deve ser motivada pela constatação de anomalia no mundo dos fatos que torne imprescindível a produção imediata de norma com força de lei. São razões de fato as únicas que autorizam a utilização dessa figura excepcional. Questões de mera conveniência política podem e devem observar o processo legislativo ordinário
Em decorrência, a medida provisória só pode disciplinar o fato peculiar que ensejou a sua edição e nenhum outro. Há uma relação biunívoca entre a norma e o fato: a norma se reporta ao fato e o fato justifica a norma. Deve, pois, haver pertinência temática. De tal modo que a inclusão de normas sem relação com caso que justificou a medida provisória afigura-se inconstitucional.
O vício pode ser perpetrado tanto por parte do Poder Executivo, ao incluir tais normas na redação original da medida provisória (as chamadas “caronas”), quanto por parte do Poder Legislativo, ao introduzir normas dissociadas dos fatos que ensejaram a medida provisória, no processo de sua conversão em lei (os chamados “jabutis”). Afinal, a medida provisória é um instrumento alternativo ao projeto de lei, cuja utilização depende da observância estrita dos pressupostos constitucionais. Da mesma forma que o Poder Executivo não pode utilizar de forma anômala a medida provisória, para burlar o processo legislativo normal, igualmente não pode o Poder Legislativo fazê-lo, aproveitando-se do rito diferenciado de tramitação da medida provisória. Em ambos os casos, há abuso de poder, em fraude à Constituição.
Aliás, é oportuno recordar que, recentemente, o presidente do Congresso Nacional rejeitou a MP 669/14, exatamente por entender que o Poder Executivo deveria valer-se do procedimento legislativo comum e não da medida provisória, por não haver excepcionalidade que justificasse a sua adoção.
No caso da MP 664/14, integrante do mesmo pacote de “ajuste fiscal” em que inserta a medida recém rejeitada, verifica-se situação inversa, em que o Congresso Nacional pretendeu incluir no texto da lei de conversão regras dissociadas do fato que justificou a adoção da medida pelo Poder Executivo.
Sem adentrar no mérito das alterações propostas e mesmo abstraindo o exame quanto à existência ou não de um fato determinado que justificasse a adoção da medida provisória, é fácil perceber que a inserção da “regra do 85/95” no seu projeto de conversão em lei ocorreu de forma irregular, pois ela nada tem a ver com a situação inicialmente regulada pelo Poder Executivo.
Realmente, a medida provisória em questão foi editada “com o objetivo de realizar ajustes necessários nos benefícios da pensão por morte e auxílio-doença no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS)”, tendo em vista que “o expressivo déficit financeiro e atuarial do regime próprio conclama medidas estruturantes, relevantes e urgentes, que venham a resguardar a melhora do equilíbrio financeiro e atuarial do ente federativo e garantir o pagamento de todos os demais benefícios aos servidores e seus beneficiários”, como consta da Exposição de Motivos que a acompanhou.
Tal motivação, que serve para o teste de adequação da medida, tanto no que se refere à sua proposta inicial quanto às emendas ocorridas na tramitação legislativa, levam a duas conclusões de suma importância: (a) a anomalia fática que ensejou sua introdução no ordenamento consiste nas distorções causadas pela forma atual de concessão dos referidos benefícios; e (b) as soluções normativas adotadas foram a mudança no modelo de concessão desses mesmos benefícios previdenciários. Esse o caso de relevância e urgência a que se reporta a MP em questão.
O tema aposentadoria, no bojo do qual se insere o problema do fator previdenciário e a “regra do 85/95”, jamais esteve na ordem do dia da MP 664/14, passando ao largo do caso que exigiu imediato regramento pelo Executivo. A regra, veiculada por emenda apresentada pelo deputado federal Arnaldo de Sá (PTB/SP), consiste, no jargão político, em verdadeiro “jabuti” que em nada se relaciona com o problema de fato tratado. Por isso, não poderia o Legislativo tê-la inserido sem que com isso incorresse em violação à norma contida no artigo 62 do texto constitucional.
Mesmo porque o tema é altamente delicado, demandando ponderação e planejamento, isto é, uma solução racional e sistemática, consistente com a política de previdência social adotada pelo país de um modo geral. Por isso mesmo, requer — melhor, exige — um exame cuidadoso, típico do processo legislativo ordinário, único capaz de conferir a necessária serenidade que o caso impõe. Exame esse, diga-se, que está longe de ser possível e gerar bons frutos no exíguo prazo de tramitação por que passou a MP 664/14.
Salta aos olhos, portanto, a impropriedade técnica e a irracionalidade da introdução da malsinada “regra do 85/95” na redação final da MP 664/14. Tais vícios levam a crer que o mais correto seria a aposição de veto ao dispositivo por parte da Presidência da República e a imediata apresentação de projeto de lei, a ser conduzido pelo rito ordinário, que viabilizasse o exame cuidadoso e adequado que a Constituição Federal impõe para a edição de normas legais em geral e, em especial, para temas de tamanho relevo, como o é a previdência social.
Afinal, como a regra atual de fator previdenciário foi introduzida no fim da década de 1990, é fácil notar que nada há de urgente a justificar a repentina pressa em alterá-la, sobretudo considerando os grandiosos e possivelmente nocivos (talvez desastrosos) impactos que modificações irrefletidas podem acarretar para a previdência social, tão debilitada em dias atuais, ainda que tais efeitos somente venham a ser constatados futuramente…
Hamilton Dias de Souza é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado no escritório Dias de Souza Advogados Associados, mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.