Autor(es): Hamilton Dias de Souza e Hugo Funaro
O projeto de lei que cria o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT, de autoria do Poder Executivo, contempla avanços decorrentes dos amplos debates havidos sobre o tema na Câmara dos Deputados, estando no aguardo de votação pelo Senado Federal (PLC 186/2015).
Como apontado na Exposição de Motivos do Projeto, a iniciativa não é inédita. Diversos países já adotaram medidas semelhantes, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Rússia, Bélgica, Itália, Portugal, Austrália, Argentina, México.
O momento para aprovação do tema é oportuno. Além de trazer paz de espírito a inúmeros brasileiros que, em momentos de instabilidade política e econômica, remeteram ao exterior, de forma irregular, recursos que haviam sido obtidos licitamente, a proposta permite a introdução, em nossa economia, de capitais necessários ao rompimento do ciclo de recessão que se desenha e à contenção da escalada do dólar. Esses os principais objetivos da medida.
A experiência internacional demonstra que são dois os requisitos a serem atendidos para o sucesso da medida: (1) sigilo das informações prestadas; e (2) fixação de alíquotas razoáveis.
O primeiro requisito está atendido pelo projeto, que impede a divulgação das informações prestadas pelos optantes do RERCT pelas instituições financeiras e órgãos que a elas tiverem acesso, ficando expressamente vedada sua utilização como único elemento para fundamentar ações penais ou administrativas contra o declarante. A restrição se justifica em razão do princípio basilar de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio. Ademais, o risco de o declarante ficar submetido a inadmissível “devassa exploratória” (STF – HC 95.009/SP, HC 84.758/GO, entre outros) pelo só fato de ter apresentado a declaração de bens e direitos mantidos no exterior seria fator inibitório da adesão ao regime especial. Obviamente, ninguém quer ficar sujeito a esse tipo de constrangimento, especialmente quando adere voluntariamente a programa de incentivo à formalidade criado pelo Governo. Isso não impede, todavia, que as autoridades policiais e o Ministério Público investiguem e punam os culpados por infrações ao ordenamento, valendo-se dos meios disponíveis na legislação e que seriam normalmente usados caso não existisse a declaração de adesão ao RERCT.
Quanto ao segundo requisito, o projeto original pretendia exigir, sob a forma de imposto e multa, o pagamento de valor equivalente a 35%, ou seja, mais de um terço do patrimônio mantido no exterior. O percentual aproximava-se do praticado na Alemanha, onde foram arrecadados apenas 980 milhões de euros. Atenta a isso, a Câmara dos Deputados reduziu a alíquota nominal total a 30% e exclui da base de cálculo a variação cambial verificada desde dezembro/2014, o que, segundo estimativas, implica uma carga efetiva em torno de 20%. Houve, portanto, redução considerável do valor inicialmente proposto pelo Ministério da Fazenda, mas ainda assim a taxação é bem superior à praticada em países como Itália (2,5% e 5%) e México (4% e 7%), onde o programa de regularização de capitais atingiu números muito expressivos: 100 bilhões de euros e 40 bilhões de dólares, respectivamente.
Os resultados alcançados em outros países demonstram que a redução das alíquotas do imposto e da multa exigido para ingresso no RERCT não implica, necessariamente, perda para o Erário. Ao tornar mais atrativa a adesão ao programa e aumentar o volume de recursos repatriados, poderá render arrecadação maior do que resultaria das alíquotas propostas pelo Executivo. Por outro lado, o aspecto arrecadatório, embora considerável, não deve ser o principal objetivo da regularização dos capitais. Como anteriormente mencionado, a segurança jurídica e a injeção de recursos na economia são as finalidades que devem nortear a formatação do projeto.
Diversamente do que noticiaram alguns veículos de comunicação, a aprovação do projeto não contribuirá para a impunidade de pessoas investigadas em processos de corrupção, como a “Operação Lava-Jato”. Por uma singela razão: só estão compreendidos na anistia os recursos obtidos de forma regular (honorários, dividendos, salários etc), os quais só se tornaram ilícitos, ou por não pagamento de tributos, ou por serem enviados ao exterior de forma clandestina, notadamente com o objetivo de proteção patrimonial. Não é o caso dos investigados na operação “lava-jato” e demais similares, que tenham recebido recursos ilicitamente.
Quanto à prova da licitude dos recursos, alguns parlamentares vêm sustentando que a comprovação deva ser feita pelo optante do RERCT. A proposta é inadequada, pois, como é sabido, grande parte dos recursos foi recebida há décadas, além de ter sido remetida ao exterior por meios não oficiais, o que torna impossível, na prática, que o titular dos bens e direitos consiga reunir documentos para comprovar a que título se deu o recebimento dos valores mantidos no exterior. Ademais, em face dos princípio constitucional da presunção de inocência, deve-se aceitar a declaração do interessado quanto à licitude dos recursos, o que não impede, de qualquer modo, que as autoridades policiais e o Ministério Público investiguem, produzam provas e busquem a condenação judicial dos agentes responsáveis por crimes contra a Administração Pública e outros tão ou mais graves, como terrorismo e tráfico de drogas, hipótese em que restará completamente sem efeito a adesão ao regime especial.
Outro ponto que tem sido objeto de críticas é de que a alíquota do imposto de renda seria inferior à normal, caracterizando remissão de tributos sem lei específica, em suposta violação ao art. 150, §6º, da Constituição Federal. Além do requisito da especificidade ter sido respeitado, já que o tratamento tributário é condizente com o tema regulado pelo projeto de lei (cf. orientação do STF), a situação fática nele disciplinada é única e, por isso, demanda o estabelecimento de tratamento singular, que não se confunde com desoneração fiscal. A lei abrange recursos remetidos ao exterior há anos, os quais, sendo de origem lícita, presume-se tenham sido tributados no passado. Além disso, os recursos enviados ao exterior há mais de cinco anos não poderiam ser tributados. E a denúncia espontânea da infração afastaria a multa incidente sobre o valor do imposto (CTN, art. 138). Assim, em muitos casos, seria indevida a exigência de imposto e multa nos patamares pretendidos pelo Fisco. Diante da multiplicidade de situações, por pragmatismo, o legislador optou por conferir tratamento uniforme aos optantes pelo RERCT, que ficam sujeitos à mesma taxação independentemente do exame de cada caso particular, como numa espécie transação, que busca equilibrar os interesses envolvidos.
Também tem sido questionada a possibilidade de anistiar multas associadas ao descumprimento de obrigações tributárias relacionadas aos bens e direitos a serem regularizados, tendo em vista o art. 180, I, do CTN, que veda a aplicação do benefício a atos praticados com dolo específico pelo sujeito passivo. A correta interpretação do dispositivo é no sentido de que a anistia restringe-se a infrações tributárias decorrentes de atividades lícitas. Ora, o projeto segue à risca tal orientação, na medida em que a anistia só compreende situações em que o contribuinte obteve recursos em decorrência de “atividades permitidas ou não proibidas pela lei” e eventualmente tenha deixado de recolher os tributos devidos, ou de incluí-los em suas declarações periódicas, excluindo, pois, os recursos decorrentes de atividades ilícitas.
Acentue-se que a fórmula proposta não visa beneficiar grupos locais com interesse específicos. Trata-se do mesmo modelo que tem sido fortemente recomendado pela OCDE como medida prévia ao estabelecimento da transparência fiscal e à colaboração internacional na troca automática de informações entre as Administrações Fiscais de diferentes jurisdições associadas. Não se trata, assim, de uma novidade brasileira, mas de etapa prévia e necessária para a introdução de regras internacionais de transparência. Aliás, estudo preparado pela mesma OCDE revela que 47 jurisdições implementaram modelo semelhante, tendo muitas delas sistemas jurídicos como o brasileiro em que a legalidade representa pilar do capítulo tributário – v.g. Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, México, Argentina e outros –, sem que as regras sobre a regularização tenham sido declaradas inconstitucionais (Update on Voluntary Disclosure Programmes: A pathway to tax compliance – Agosto/2015).
Dessa maneira, o tratamento tributário previsto no PLC 186/2015 revela-se em linha com as políticas internacionais recomendadas e adotadas por diversos países desenvolvidos, o que reforça o seu cabimento e recomenda a sua aprovação.
Hamilton Dias de Souza é sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Hugo Funaro é advogado tributarista, mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP .Sócio do Dias de Souza Advogados Associados.