Veículo: Jornal do Commercio
Aprovado na primeira semana de julho numa jornada que durou pouco mais de 48 horas, entre a votação em dois turnos de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a Reforma Tributária virou uma profissão de fé na possibilidade de as empresas pagarem impostos de forma mais fácil num novo modelo que se apoia na ideia consensual de recolher os tributos onde produtos e serviços são consumidos.
O conceito é universal. Já que vamos pagar impostos, o Fisco precisa facilitar seu recolhimento do Estado. E se vamos pagá-lo, que o destino seja no lugar mais próximo de quem vai se beneficiar dele.
O problema da proposta que a Câmara Federal aprovou é que – após quase um mês – ainda não tem um texto definitivo. Está numa Comissão de Redação que o está preparando para ser remetido ao Senado. Comissões de redação tendem, naturalmente, a “interpretar” o que o legislador quis aprovar.
Embora seja pouco provável que a grande maioria dos 382 deputados que votaram a favor tenham o domínio do que significou seu voto nas sessões de 7 de julho, horas antes de o presidente da casa Arthur Lyra embarcar para um cruzeiro nas Bahamas liderado pelo cantor Wesley Safadão (WS On Board) de quem Lyra e seus filhos são admiradores.
Apesar de tudo, a simples perspectiva de ter uma Reforma Tributária sustenta apaixonadas defesas da proposta em debate. Mesmo que até agora sequer seja possível estimar, por exemplo, a alíquota que será cobrada em substituição às atuais de ISS, ICMS, PIS, Cofins e IPI.
Em tese, ele deve variar entre 25% e 33%. Entretanto, pelo projeto, a alíquota de referência deva ser fixada pelo Senado (que precisará a seguir aprovar um Lei Complementar específica) com o TCU fazendo o cálculo do imposto. Também parece claro que essa crença vem do conceito de reunir todos os tributos num único Documento de Arrecadação Fiscal (Darf).
Bom, o conceito um só imposto foi para o espaço. Prevaleceu a tese do IVA Dual onde em um, se juntou o IPI e as contribuições PIS e Cofins e em outro o ISS e o ICMS. Ainda foi aprovado um terceiro imposto chamado de seletivo definido como serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Portanto, estaremos trocando não cinco Darf por um, mas cinco por três.
CARTA DE INTENÇÕES
E assim como existem os que têm absoluta certeza de que a Reforma Tributária vai ser a solução do complexo sistema de apuração para o pagamento de imposto no Brasil, inclusive com dezenas de estudos que chegam ao nível de detalhe em prevê o crescimento do PIB em 15 anos quando, sequer a alíquota dos novos foi estimada, existe um grupo de economistas e tributaristas que se irritam com a superficialidade dos argumentos.
A professora e tributarista Mary Elbe Queiroz fez um estudo sobre o impacto do texto proposto – antes da votação definitiva já que o texto ainda está na comissão de redação – e chegou à conclusão que ele vai mexer em mais de 150 dispositivos constitucionais.
Isso se deve à complexa articulação política nas últimas semanas de junho que remeteu praticamente toda a mudança que a PEC provocará para leis complementares. Conhecida pela sua franqueza, ela lembra que a implantação da proposta somente termina em 2078: “Portanto, a maioria dos que à estão votando não estarão mais entre nós para vê-la concluída”.
Ao menos dois ex-secretários da Receita Federal e que se tornaram reconhecidos especialistas no tema têm sérios questionamentos sobre a proposta que os senadores vão se debruçar.
LEI COMPLEMENTAR
Everardo Maciel avalia o texto apresentado na Câmara Federal e assumido pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) como de baixíssima qualidade. Por misturar de uma série de temas numa única PEC; misturar aspectos de automação fiscal que já existem com uma proposta de mudança radical de legislação e por desconsiderar legislações consolidadas. Para ele se criou o mito (com uma bem montada ação de propaganda) de que vamos resolver de forma simples um problema complexo.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, atual Vice-presidente da FGV concorda com Maciel no sentido que a proposta em análise no Congresso é o sucesso de uma narrativa que prega uma suposta simplificação que na prática será altamente burocratizada. E vê um enorme desperdício de energia na aprovação de um PEC que remete para uma Lei Complementar quando a maioria dos dispositivos poderiam ser alterados por legislação infraconstitucional.
Cintra adverte que o Brasil, certamente, viverá uma década de incerteza e insegurança jurídica com embates nas cortes do Judiciário à medida que as normas de aplicação (a partir da própria Lei Complementar a quem a PEC remete) forem sendo aprovadas e os estados e municípios tomem conhecimento que vão perder.
Maciel vai mais longe. Para ele, a proposta de um Conselho Federativo para definir a distribuição da arrecadação entre os entes simplesmente não existe no nosso ordenamento jurídico. “Porque, na atuação do Conselho, estaremos permitindo que burocratas criem e aprovem leis de natureza fiscal”, diz.
O economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público IDP e da Universidade de Lisboa afirma que não estamos discutindo uma Reforma Tributária. “A proposta aprovada na Câmara altera tributos incidentes sobre consumo, que hoje arrecada pouco mais de 35% da receita nacional. Por mais relevante que seja, está longe sequer de responder pela maioria do que se arrecada”.
CLÁUSULA PÉTREA
O tributarista Hamilton Dias de Souza, ex-professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP e que lidera um dos maiores escritório de advocacia do país avalia que a proposta não poderia sequer ser analisada nem aprovada pelo Congresso Nacional, por ferir cláusula pétrea.
“Chama atenção o fato de que se dispensou a análise por Comissão Especial antes da votação em Plenário; o tempo entre a apresentação do substitutivo do Relator e o início das deliberações foi de menos de uma semana; e o texto foi apresentado minutos antes da votação em primeiro turno. Não por acaso vários deputados reclamaram não saberem o que estavam votando”, diz.
O professor Hamilton Souza é generoso. Poucos deputados e dezenas de líderes de associações empresariais sabem exatamente no que votaram. Embora alguns deputados saibam exatamente porque votaram nos destaques na manhã da sexta-feira, 7 de julho.
Como Everardo Maciel, ele adverte que a PEC proposta interfere diretamente na autonomia dos Estados e Municípios, ao transferir a competência de instituir e arrecadar seus principais tributos ao poder central. E afirma que haverá aumento de carga tributária nos setores de Educação e Saúde.
De fato, se aprovada, a União poderá não apenas instituir a Contribuição sobre Bens e Serviços (que é de sua competência), mas também o Imposto sobre Bens e Serviços, (de competência subnacional, por meio de lei complementar). Como ambos (IBS e CBS) terão de ter regras idênticas e serão criados pelo Congresso Nacional isso enfraqueceria a Federação, pois estados e municípios não terão a capacidade de legislar sobre fontes de recursos para financiar suas atividades.
O que tributaristas e economistas questionam é se os estados e municípios estão mesmo dispostos a isso?
Tanto José Roberto Afonso, como Maciel e Cintra, têm dúvidas. Afonso lembra que a Alemanha adotou uma solução mais simples, em que o governo federal legisla, o estadual arrecadado, e ambos dividem a arrecadação.