Veículo: Valor econômico caderno: Opinião, pág. A-14
Autor(es): Hamilton Dias de Souza
A lei da Nota Fiscal, cidadania e concorrência
Por Hamilton Dias de Souza e Roberto Abdenur
É noção corrente que a carga tributária tem influência direta na fixação dos preços de mercadoria e serviços. Entretanto, a população não tinha uma noção muito clara do valor efetivo dos tributos embutidos nos produtos e serviços postos à venda no mercado até a entrada em vigor da Lei nº 12.741, de 08 de dezembro de 2012.
A lei referida, que tem sido chamada de “Lei da Nota Fiscal”, determina a inclusão, nos documentos fiscais ou equivalentes emitidos por ocasião da venda a consumidores finais de produtos e serviços, de informação quanto ao valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda (ICMS, ISS, IPI, IOF, PIS, Cofins e Cide-combustíveis).
Não raro, o consumidor mais atento depara-se com produtos e serviços cujos preços são decisivamente influenciados pelos tributos sobre eles incidentes. Estudos divulgados por entidades especializadas mostram, por exemplo, que, em média, a carga tributária do cigarro gira em torno de 54%; a de bebidas alcoólicas, em torno de 50%; e a da gasolina, em torno de 32%. Ou seja, casos há em que o tributo custa até mais do que a própria mercadoria.
Estados e municípios têm que dispor de instrumentos que os coloquem a salvo de manobras dilatórias
As vantagens de tornar visível o custo tributário antes escondido nos preços são muitas. Uma delas é o maior controle sobre o peso da carga tributária que recai sobre cada espécie de produto ou serviço, o que possibilita a adoção de medidas corretivas. Outra é que a população torna-se mais consciente do quanto contribui para o rateio das despesas públicas e, dessa maneira, passa a ter melhores condições de exigir dos governos federal, estadual e municipal investimentos públicos compatíveis com o volume de tributos que se arrecadam.
O problema é que nem sempre o custo tributário é efetivamente suportado pelo vendedor da mercadoria ou prestador do serviço ofertado no mercado. Por razões das mais variadas, que vão desde a pirataria até a simples falta de pagamento, muitos agentes econômicos deixam de cumprir suas obrigações tributárias. Com isso, perdem-se recursos que poderiam ser investidos em setores prioritários e criam-se medidas de compensação que acabam por elevar a carga tributária daqueles que costumam pagar em dia as suas contas.
O inadimplemento das obrigações fiscais permite, ainda, que os valores dos tributos que deveriam ser arrecadados pelo governo, nos termos da legislação em vigor, passem a ser desconsiderados quando da formação de preços de mercadorias e serviços, proporcionando uma vantagem competitiva artificial para contribuintes que adotam essa prática como se fosse um “modelo de negócio”. Tal vantagem pode atingir níveis dramáticos em setores com alta carga tributária e margens de lucro reduzidas, notadamente quando os contribuintes que pagam seus tributos regularmente não tenham condição de reduzir o preço de suas mercadorias e serviços ao patamar praticado pelos contribuintes inadimplentes, sem abrir mão da lucratividade do seu negócio.
Os mecanismos tradicionais de fiscalização não vêm se mostrando eficazes para combater essas estruturas empresariais que têm na sonegação contumaz e sistemática de tributos seu principal elemento competitivo. É necessário, portanto, criarem-se sistemas diferenciados de controle e arrecadação tributária que possibilitem combater o problema de forma eficiente, não só para preservar o erário, mas também a livre concorrência.
A criação de sistemas de tributação eficazes depende, porém, da edição de lei complementar que estabeleça normas gerais aplicáveis aos tributos federais, estaduais e municipais, conforme exigido pelo art. 146-A da Constituição Federal (“Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”).
Note-se que tal dispositivo, introduzido na Constituição Federal por intermédio da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, admite que, na ausência de lei complementar, a União possa editar leis ordinárias contendo critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios concorrenciais causados por seus tributos. A mesma prerrogativa não se aplica, porém, aos Estados e municípios, que só poderão produzir as normas aplicáveis aos respectivos tributos após a edição da lei complementar referida.
Recentemente, o senador Delcídio do Amaral apresentou o PLS-C 161/2013, com o objetivo de regular a matéria objeto do art. 146-A da Constituição Federal. O projeto de lei complementar, que aguarda apreciação pelo Senado, trata do assunto com muita propriedade. Além de definir os sistemas especiais de pagamento de tributos e prestação de informações cabíveis para prevenir desequilíbrios concorrenciais, ele estabelece limites e condições para a sua utilização, de forma a impedir o uso indiscriminado pelas autoridades fiscais, com fins meramente arrecadatórios. Ainda, o projeto deixa clara a possibilidade de repressão, pelos órgãos de defesa da concorrência, do abuso de poder econômico decorrente da falta de cumprimento de obrigações fiscais.
Assim, é de todo conveniente que o Congresso Nacional examine com brevidade o PLS-C 161/2013, cuja aprovação será fundamental para permitir que, além da União, também os Estados e os municípios possam criar sistemas diferenciados de tributação destinados a assegurar que os custos tributários revelados pela Lei da Nota Fiscal efetivamente revertam aos cofres públicos e, dessa maneira, proporcionem o desmantelamento de estruturas empresariais danosas ao mercado e à sociedade.
É, efetivamente, de grande interesse para os Estados e municípios passarem eles a dispor de instrumentos tributários confiáveis, efetivos e dotados de sólida fundamentação constitucional e legal, que os coloque a salvo de questionamentos jurídicos e manobras dilatórias por empresas inescrupulosas, e assim lhes permita reforçar a sua capacidade de fiscalização e arrecadação.
Hamilton Dias de Souza é advogado.
Roberto Abdenur é presidente executivo do Etco