Veículo: Revista Consultor Jurídico
Autor(es): Douglas Guidini Odorizzi e Mário Luiz Oliveira da Costa
Há notícia de que o governo federal estuda a possibilidade de passar a aceitar a apropriação de créditos de PIS e Cofins em relação a todas as despesas incorridas no exercício das atividades empresariais, cogitando de eventual alteração legislativa nesse sentido. O Poder Judiciário, de seu turno, definirá o que já é assegurado pelos dispositivos legais e constitucionais em vigor. A qualquer momento será julgado, pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, recurso especial no qual deverá ser examinada, sob a sistemática do artigo 543-C do CPC, a amplitude do conceito de insumo tal como previsto nas Leis 10.637/02 e 10.833/03 (RESP 1.221.170-PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, retirado da pauta em 24 de setembro). Aguarda-se, também, o oportuno julgamento do tema atinente à não cumulatividade destas contribuições pelo Supremo Tribunal Federal, já tendo sido reconhecida sua repercussão geral nos autos do ARE 790.928 (Rel. Min. Luiz Fux).
A par de diversos outros temas envolvidos e ainda a serem dirimidos pelos tribunais, o aspecto principal a ser definido diz respeito a saber se a não cumulatividade de que se cuida deve ser plena e integral. Vejamos.
A Constituição Federal outorga competência à lei ordinária para selecionar os setores da atividade econômica sujeitos à sistemática não cumulativa de apuração das contribuições sobre a receita (CF, artigo 195, parágrafo 12). Embora o texto tenha eficácia limitada no que respeita à implementação do regime, na medida em que a parte inicial do dispositivo exige a produção de norma legal que defina os contribuintes a ele sujeitos, a parte final do parágrafo tem eficácia plena, quando determina que, definidos os setores, as contribuições “serão não-cumulativas”. Trata-se de conteúdo preceptivo mínimo a ser observado, sob pena de tornar ineficaz a própria norma constitucional.
Nessa medida, o legislador ordinário tem discricionariedade na definição dos setores sujeitos ao regime não cumulativo do PIS e da Cofins. Tal discricionariedade, entretanto, não atinge a própria não cumulatividade, devendo aplicar-se, por completo, de forma vinculada e sem restrição. Ou bem há apuração não cumulativa ou bem vigora a sistemática cumulativa. A instituição de “não cumulatividade parcial” nada mais é do que uma verdadeira e vedada cumulatividade.
Por conseguinte, é imperioso que as normas que disciplinem a não cumulatividade sejam interpretadas e aplicadas de forma condizente com essa diretriz, não sendo legítimo negar o crédito próprio do sistema não cumulativo, sob pena de inconstitucionalidade. Deve existir adequação entre meios e fins.
A não cumulatividade implica, necessariamente, não sobreposição de incidências. Nessa toada, o aspecto a ser observado é que as contribuições em questão — se e enquanto sujeitas ao regime não cumulativo — devem ser neutras — não podendo se tornar um elemento de custo. Se isso ocorrer, o tributo embutido no preço será novamente tributado como se fosse receita. Haverá, então, superposição de incidências (“tributação em cascata”), tornando a exigência cumulativa, em contraposição ao regime não cumulativo.
Para que referido efeito não se verifique, deve ser assegurado o abatimento dos gastos incorridos para a obtenção de receita pela pessoa jurídica ao final de cada período de apuração para somente sobre o resultado líquido calcular-se o devido a título de PIS e de Cofins[1].
Considerando o espectro de incidência do PIS e da Cofins (todas as receitas, independentemente da origem ou denominação), a aquisição de qualquer bem, direito ou serviço, desde que condizente com o objeto social da empresa e cujo valor esteja sujeito à incidência das mesmas contribuições, deve ensejar o crédito do montante equivalente para que a pessoa jurídica possa deduzi-lo dos débitos gerados pelas receitas que a auferir. Afinal, se o PIS e a Cofins incidem sobre quaisquer receitas (salvo determinadas exceções), obviamente os créditos devem ser considerados sobre quaisquer gastos incorridos no curso da atividade empresária visando a sua obtenção (observadas as mesmas exceções)!
Ora, os gastos que ensejam o direito de crédito como insumos devem vincular-se ao critério material que individualiza as contribuições. Logo, é incorreto buscar de empréstimo para a sua definição conceitos das normas que regem a apuração seja do IPI (posição do Fisco – INs 247/02 e 404/04), seja de outros tributos como, por exemplo, o IRPJ e a CSLL. É que como cada um deles tem como pressupostos de fato realidades inconfundíveis com as do PIS e da Cofins, a aplicação de qualquer das normas que os disciplinem representa analogia vedada pela legislação (artigo 108 do CTN).
Daí porque, não obstante as Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 não tenham conceituado expressamente o termo “insumo” ou o que se deva entender como bens e serviços “utilizados como insumo”, critério para a identificação do serviço ou bem como tal deve ser a sua inerência (assim entendida de forma ampla, não restrita) com o contínuo desenvolvimento da atividade econômica geradora de elementos que acrescem o patrimônio da pessoa jurídica (exame finalístico). Aquilo que é adquirido para auferir receita, já que é o meio para atingir o fim.
Tanto assim é que as únicas vedações expressas dizem respeito aos gastos com mão de obra paga a pessoa física e com a “aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição[2], inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota zero, isentos ou não alcançados pela contribuição[3]” (artigo 3º, parágrafo 2º das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003).
Admitir entendimento diverso, no sentido de que o conceito de insumo para o PIS e a Cofins esteja restrito aos gastos com bens e serviços diretamente agregados aos produtos comercializados e aos serviços prestados ou ainda que o legislador poderia criar e suprimir créditos, ao seu alvedrio, implicaria perda de coerência e racionalidade na tributação, caracterizando abuso de poder legislativo, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[4]. Ao contrário do imaginado, o legislador tem o dever de ser coerente na regulação do sistema não cumulativo que criou.[5]
Importa destacar que a legislação não determina, em momento algum, que o bem, serviço, custo ou despesa devam ser diretamente vinculados à fabricação do bem posto à venda ou à prestação do serviço envolvido. Também não exige que neles (bem ou serviço) se incorporem ou sejam consumidos, quer parcial ou integralmente.
Aliás, caso tais restrições constassem de lei, haveria inconstitucionalidade em razão do efeito cumulativo daí decorrente. Sequer constando de lei, mostram-se ainda mais ilegítimas, pois implicam restringir onde a lei não restringiu, ferindo princípio elementar de hermenêutica[6], como ensina Carlos Maximiliano: “Quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas”[7].
Não se nega que, para conferir segurança jurídica o legislador pode contemplar em lista as aquisições com direito ao crédito (“praticabilidade”). Todavia, para que não haja desrespeito à lógica interna das contribuições, certo é que referida finalidade deve ser compatibilizada com a não cumulatividade. O fato de o legislador ordinário ter liberdade para definir os setores submetidos ao regime não cumulativo e o método para assegurá-lo evidentemente não lhe autoriza estruturá-lo de modo a permitir, naquele mesmo regime e de forma contraditória, a incidência “em cascata”.
Portanto, a não cumulatividade do PIS e da Cofins em si, tal como explicitada pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, com as respectivas alterações posteriores, pode e deve ser considerada como tendo atendido aos ditames constitucionais em interpretação conforme a Constituição, entendendo-se o disposto em seus artigos 3º, inciso II e parágrafo 3º como garantidor do direito ao crédito em relação a todos os bens, serviços, custos ou despesas onerados por referidas contribuições, adquiridos ou incorridos para ou no regular desenvolvimento, ainda que indiretamente, das atividades que gerarão receitas igualmente oneradas pelas mesmas contribuições.
Em especial no atual momento econômico pelo qual passa o país, será extremamente salutar se o tema for definido pelo Poder Judiciário de modo a assegurar que, nas hipóteses em que determinada a apuração do PIS e da Cofins conforme a sistemática não cumulativa, esta seja efetivamente plena e integral. Melhor ainda se a própria Administração passar a adotar tal entendimento, respeitando o que já decorre do quanto disposto na Constituição Federal e na legislação em vigor[8] e simplificando o que se tornou verdadeiro tormento para as empresas nacionais.
Trata-se, simplesmente, de interpretar os dispositivos legais aplicáveis em conformidade com o limite imposto pela racionalidade no exercício da competência tributária (no caso, relativamente ao PIS e à Cofins não cumulativos).
[1] Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o regime de não cumulatividade visa “a assegurar a compensação, em cada operação relativa a circulação de mercadoria, do montante do tributo que foi exigido nas operações anteriores, seja pelo próprio Estado, seja por outro, de molde a permitir que o imposto incidente sobre a mercadoria, ao final do ciclo produção-distribuição-consumo, não ultrapasse, em sua soma, percentual superior ao correspondente a alíquota máxima prevista em lei, relativamente ao custo final do bem tributado” (RE 109.486/SP – Rel. Min. Ilmar Galvão – DJ: 24/04/92).
[2]Hipóteses em que não há cumulatividade a ser neutralizada.
[3]Assegurando o crédito, assim, a contrario sensu, nos casos em que os bens ou serviços isentos forem utilizados para fins de produção de bens ou prestação de serviços tributados, de modo a não frustrar a própria isenção.
[4]“TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. – O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. – O Estado não pode legislar abusivamente.A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. – A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado.” (STF – ADI-MC-QO 2.551/MG – Rel. Min. Celso de Mello – DJ: 20/04/2006 – destacamos).
[5]No mesmo sentido, vide a opinião de Humberto Ávila (O “postulado do legislador coerente” e não-cumulatividade das contribuições. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões de direito tributário. 11.ed. São Paulo: Dialética, 2007, p.180 e seguintes).
[6]Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
[7]Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 18ª ed. – 1999, págs. 246/247.
[8]De modo que, a rigor, não se faz necessária qualquer alteração legislativa (como sinaliza o governo federal), bastando a revisão dos atos interpretativos editados pela Receita Federal.
Mário Luiz Oliveira da Costa é advogado, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associado.
Douglas Guidini Odorizzi é advogado, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados.