Veículo: O Estado de S. Paulo
Autor(es): Mário Luiz Oliveira da Costa
A pandemia do coronavírus (COVID-19) fez com que a maioria dos tribunais pátrios passasse a adotar dois sistemas de julgamento: por videoconferência e em sessões virtuais. Naqueles, os advogados constituídos nos feitos podem acompanhar as respectivas sessões em tempo real, admitindo-se não apenas a realização de sustentações orais como, também, intervenções que se mostrem cabíveis, assemelhando-se em muito às sessões presenciais, não obstante a elas não se equiparem integralmente. Nestes, contudo, as distinções em relação às sessões presenciais têm sido desnecessariamente exacerbadas.
Ainda que ambos os sistemas demandem aperfeiçoamentos, aqueles atinentes aos julgamentos em sessões virtuais são mais urgentes, em especial no que respeita às sete sugestões a seguir sucintamente comentadas.
Os julgamentos “por meio eletrônico” foram previstos no artigo 945 do CPC/2015, então limitados aos processos sem possibilidade de sustentação oral e, ainda assim, assegurada a sessão presencial em caso de oposição de qualquer das partes, independentemente de motivação, bem como na hipótese de se verificar divergência entre os julgadores. Foram, portanto, claramente idealizados para viabilizar a redução dos acervos atinentes a casos envolvendo discussões pacificadas nos respectivos órgãos julgadores.
Todavia, com a revogação do referido artigo 945 (pela Lei n. 13.256/2016), as sessões virtuais passaram a ser utilizadas, aos poucos e cada vez mais, para julgamentos de quaisquer feitos, inclusive envolvendo matérias inéditas.
A ausência de parâmetros legais ou regulamentares aplicáveis a todos os tribunais originou a adoção de procedimentos distintos, muitas vezes dentre órgãos julgadores do mesmo tribunal. A par de diversos outros aspectos (como critérios para a definição dos feitos a serem julgados sob tal sistemática, momento de disponibilização dos votos, possibilidade de manifestação dos advogados no curso do julgamento, dentre outros), veja-se a questão atinente à mera oposição das partes: enquanto alguns órgãos julgadores as aceitam ainda que imotivadas, outros exigem motivação, outros demandam haver tema não pacificado e outros, ainda, as indeferem independentemente das considerações ou motivações apresentadas!
Imperiosa, assim, a regulação das sessões virtuais, se não por lei, ao menos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesta hipótese a ela aderindo também o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que supostamente não obrigado a tanto. Isonomia, segurança jurídica e razoabilidade impõem sejam adotados os mesmos modelos e procedimentos para tal sistemática em todos os tribunais pátrios, ao menos no que respeita aos seus aspectos mais relevantes, tal como se verifica nos julgamentos presenciais.
Há de se assegurar o pronto e automático deferimento das oposições (ou pedidos de destaque), com consequentes julgamentos presenciais (atualmente, por videoconferência) e sustentações orais em tempo real, sempre que apresentadas por quaisquer dos patronos constituídos nos autos.
Se é certo que não há hierarquia ou subordinação entre juízes e advogados, se é certo que continuamos em um Estado Democrático de Direito onde imperam, dentre outros, isonomia, ampla defesa, contraditório e devido processo legal, não há como ser diferente.
Cabe ao advogado (muito mais que ao magistrado) avaliar prós e contras a ser o processo em que atua julgado em sessão virtual e decidir se concorda ou não com tal providência. Sendo autorizado a qualquer dos julgadores, individualmente, requerer destaque do caso e disto decorrendo sua automática transferência para o julgamento presencial, não há plausibilidade em negar a mesma prerrogativa aos advogados constituídos nos autos.
Ao menos não é razoável deixar de atender o pedido formulado pelo advogado em caso envolvendo tema, peculiaridade, fundamento autônomo ou pedido subsidiário inéditos ou relevantes, que claramente demandem seu julgamento em sessão presencial. Ou melhor seria extinguir de vez as sessões presenciais?!
A disponibilização das pautas das sessões virtuais com menos de 30 (trinta) dias de antecedência dificulta sobremaneira a apresentação de memoriais em tempo hábil para uma análise mais detida por julgadores e seus assessores, assim como para possíveis audiências presenciais (ou, nos tempos atuais, por telefone ou videoconferência).
Trata-se de prazo mínimo para que, antes de cada sessão virtual ter início, sejam efetivamente identificados e previamente avaliados os feitos cujas peculiaridades demandem maior reflexão.
Apenas a antecedência de 30 (trinta) dias antes referida não seria suficiente para a análise, por todos os julgadores, de centenas de processos semanalmente pautados em alguns tribunais, menos ainda para viabilizar as referidas audiências e demais providências cabíveis.
Há de ser observado volume minimamente razoável de processos pautados para cada sessão virtual de modo a, conjuntamente com a antecedência na disponibilização das pautas, viabilizar a julgadores, advogados e demais operadores do direito condições mínimas para o adequado exercício de suas sagradas funções.
A substituição das sustentações orais em tempo real por “videomemoriais” e os óbices às manifestações dos advogados são duas das mais sensíveis controvérsias atinentes aos julgamentos em sessões virtuais.
Não se olvide a obrigatória observância aos direitos e prerrogativas assegurados ao advogado pela Constituição Federal (enquanto “indispensável à administração da justiça”, cf. artigo 133) e pela Lei no 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), de modo a poder o patrono do processo em julgamento não apenas realizar efetiva sustentação oral como, nos termos do artigo 7º, incisos X, XI e XII desta última, “usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas”; “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento”; e “falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo”.
Quanto aos “videomemoriais”, paira no meio jurídico a sensação de que dificilmente serão assistidos pelos julgadores, menos ainda com a necessária atenção e no momento em que forem firmar seus convencimentos acerca de cada caso concreto. Afinal, se os memoriais escritos muitas vezes não são lidos, a possibilidade de serem os “videomemoriais” assistidos parece ainda mais reduzida.
Justifica-se a introdução de mecanismo de controle pelo qual o registro de cada voto no sistema virtual somente seja possível após ter sido a “sustentação oral por meio eletrônico” assistida na íntegra pelo respectivo julgador. Obviamente, como todo sistema de controle, este também seria passível de burla, mesmo porque parece inviável garantir que alguém – e quem – tenha efetivamente assistido ao vídeo na íntegra. De qualquer modo, aumentar-se-ia a possibilidade de ser o “videomemorial” de fato assistido, afastando-se ao menos o risco de ser ele involuntariamente ignorado, pelas mais diversas razões, em alguns feitos.
Se os julgadores assistem às sustentações orais presenciais, nada justifica que não o façam nas sessões virtuais. Por mais enfadonha ou cansativa que se mostre a atividade em determinadas situações, é obrigação do magistrado assim proceder, mesmo porque atua o advogado como auxiliar da Justiça ao facilitar o exercício da função jurisdicional destacando, em breves memoriais e sustentações orais, os principais aspectos que se espera sejam examinados na prestação jurisdicional perquirida!
No que respeita às manifestações no curso do processo, não basta o sistema admitir a apresentação de pleitos escritos ou gravados. Há de se assegurar que, apresentadas manifestações a título de esclarecimentos sobre matéria de fato ou outras que compitam ao causídico, como para formular questão de ordem, replicar acusação ou censura que lhe tenham sido feitas ou mesmo reclamar contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento, seja o julgamento suspenso até sua efetiva apreciação, como única garantia de que não serão elas ignoradas (intencionalmente ou não, até em razão do volume de afazeres concomitantemente em curso). Tudo sem prejuízo de prévio exame de admissibilidade, tal como nas sessões presenciais.
Afinal, nunca serão excessivas as garantias às manifestações dos advogados e a seu efetivo exame pelos julgadores, como igualmente impõem o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Pelas mesmas razões antes expostas e para que os advogados possam identificar a necessidade de apresentarem esclarecimentos de fato ou outras manifestações, devem ser prontamente disponibilizadas as íntegras dos votos (ainda que sob a forma “em revisão” ou “sem revisão”), ou, ao menos, de notas com as razões fundamentais para os convencimentos havidos, à medida que forem registrados no sistema do tribunal.
O pronto acesso a todos os votos e manifestações, pelos advogados e pela sociedade em geral, cumpre também os requisitos de publicidade e transparência, permitindo que todos acompanhem a formação da decisão. A prática passou a ser recentemente adotada no STF, sendo imperioso que os demais tribunais procedam da mesma forma.
Há de se cuidar, contudo, para que tal não implique desincentivo à divergência (como poderia se dar com a exigência de apresentação de votos prontos e acabados, impraticável em determinadas situações), do que se reitera bastar a indicação das razões pelas quais se divirja, não sendo necessária a versão final do voto em si como, aliás, sói ocorrer em sessões presenciais.
Não menos importante a questão atinente ao “voto por omissão” aceito por alguns tribunais em sessões virtuais, inclusive de forma expressa, como no § 3º do artigo 2º da Resolução nº 642/19, da Presidência do STF (“§ 3º Considerar-se-á que acompanhou o relator o ministro que não se pronunciar no prazo previsto no § 1º”). Também quanto a tal aspecto, se a prática já era no mínimo duvidosa em casos envolvendo temas pacificados, mostra-se inaceitável nos demais.
Afinal, se o julgador tem a possibilidade de meramente acompanhar o relator sem nem mesmo apresentar as razões para tanto, a omissão significa claramente que o caso não foi por ele examinado. Isso causa grande insegurança no jurisdicionado, além de diferenciar – de forma desnecessária e extremamente negativa – a sessão virtual da presencial, na qual não se admite que o julgador habilitado se mantenha em silêncio, menos ainda seja este interpretado como concordância com o relator.
Portanto, é de rigor que, se qualquer julgador não se manifestar até o término da sessão de julgamento, seja sua omissão considerada (e registrada no sistema) como pedido de vista, suspendendo-se o julgamento a fim de ser retomado na sessão virtual seguinte, até que efetivamente registrados os votos de todos os julgadores habilitados. Assim se justifica independentemente do placar então existente e ainda que já tenha sido formada maioria, pois também nas sessões virtuais poderão os julgadores alterar seus votos até a proclamação do resultado.
Ao menos, a omissão nunca pode ser computada como concordância com quem quer que seja.
Conclusão.
Vivenciamos, na atualidade, clara dicotomia entre opostos extremados: de um lado, julgamentos virtuais com centenas de casos a serem examinados e definidos em poucos dias, sem qualquer debate entre os julgadores e com graves restrições à ampla defesa; de outro, julgamentos presenciais – temporariamente substituídos por videoconferências – com um ou mais dias inteiros desnecessariamente dedicados a um único ou a poucos casos, muitas vezes com a desnecessária leitura de longos votos concordantes (em especial, diga-se, no STF).
Urge adotar um meio-termo entre os dois extremos, uma solução razoável para tão relevante problema.
As sessões virtuais de julgamentos poderão ser um importante instrumento de produtividade dos tribunais a fim de assegurar, principalmente, a redução dos enormes acervos com uma prestação jurisdicional célere e eficaz.
Ocorre que a importância do instrumento não justifica nem legitima sua adoção em detrimento do devido processo legal, da ampla de defesa, do contraditório ou da publicidade, menos ainda a inobservância das prerrogativas da advocacia. Estas, mais do que benesses legais a alguns poucos profissionais, asseguram o sagrado exercício do direito de defesa, sem o qual imperam o autoritarismo e a injustiça.
As sessões podem ser virtuais apenas quanto à forma, vez que os julgamentos em si devem ser reais, não simulados ou meramente potenciais. Para tanto, devem ser moldadas com as características e os procedimentos necessários a aproximá-las, na medida do possível, das sessões presenciais.
As providências ora sugeridas auxiliariam tal aproximação e aumentariam a eficácia e a aceitação, dentre advogados e jurisdicionados, deste moderno sistema de julgamento. Objetivam incentivar sua adoção facultativa ou, ao menos, mitigar a arbitrariedade de sua imposição e o consequente inconformismo das partes e de seus patronos.
Mário Luiz Oliveira da Costa. Advogado, mestre em Direito Econômico pela USP, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados, conselheiro e diretor da AASP – Associação dos Advogados de São Paulo.
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/sessoes-virtuais-de-julgamento/