Veículo: ConJur
Autor(es): Hamilton Dias de Souza e Daniel Szelbracikowski
Uma proposta de reforma no controle de constitucionalidade.
A pandemia da Covid-19 tem diuturnamente testado o sistema do Direito. Desde questões relacionadas à competência e aos limites de cada ordem parcial de governo para planejar e promover a defesa contra a calamidade pública decorrente de problema de saúde pública (artigo 21, XVIII, da CF) às obrigações trabalhistas, cíveis e tributárias das empresas (que já sofrem os efeitos econômicos da crise sanitária), passando pelos problemas vivenciados na esfera penal (em que, de um lado, há de se preservar a segurança pública e, de outro, a integridade física dos detentos que se amontoam no falido sistema carcerário brasileiro), não há um único ramo do Direito que não tenha sido provocado a dar respostas constitucionalmente válidas para as perplexidades sociais ora vivenciadas.
Especificamente na esfera tributária chamaram nossa atenção decisões proferidas por juízes de primeiro grau que deferiram pleitos de suspensão de exigibilidade de tributos, por prazo certo, mediante a aplicação “emprestada” da teoria do “fato do príncipe” conforme noticiado pela ConJur. Seria possível interpretar que as liminares constituem verdadeiras “moratórias”, o que somente poderia ser decretado pelo ente federativo competente para a instituição do tributo. Se assim fosse, além de afrontar o artigo 152 do CTN, as decisões teriam quebrado o princípio da separação dos poderes. Por outro lado, poder-se-ia compreender que, à luz de fatos relevantes, urgentes e devidamente comprovados pelo contribuinte, o Judiciário teria competência própria para, com base no artigo 151, V, do CTN e visando a preservar princípios constitucionais relevantes, julgar presentes os requisitos para deferir mera suspensão da exigibilidade do crédito tributário, sem obstar sua válida formação e posterior cobrança pelo ente competente tão logo cessassem as razões de fato justificadoras da medida.
Sem prejuízo do acerto técnico, ou não, de tais decisões sob a ótica estritamente tributária, o fato é que os juízes que decidiram dessa forma não estavam diante de ações corriqueiras. Precisamente por se tratar de pleitos deduzidos em ambiente de absoluta excepcionalidade no qual estavam (e ainda estão) em jogo valores fundamentais previstos constitucionalmente, tais como, de um lado, o dever fundamental de pagar tributos, e de outro, o dever de valorização social do trabalho como expressão da livre iniciativa e meio para a erradicação da pobreza, os processos julgados eram verdadeiros hard cases que conduzem a uma reflexão maior em torno do controle de constitucionalidade no Brasil.
Embora o controle concentrado de constitucionalidade deva coexistir com o difuso, parece-nos necessária uma reforma no modelo para que juízes de primeiro grau possam provocar a Suprema Corte, após juízo prévio de admissibilidade pelo tribunal local, naqueles casos sensíveis que exijam predominantemente a interpretação de princípios constitucionais abertos.
O pós-positivismo tem sido caracterizado pela conceituação do direito não apenas como um conjunto de regras, mas também de princípios (diretivos ou princípios em sentido estrito/sobreprincípios [1]) emanados pelo Estado. As regras trazem pautas específicas de conduta, isto é, descrevem um comportamento obrigatório, permitido ou proibido. Os princípios são mandados de otimização do sistema que estabelecem um “estado ideal de coisas a ser buscado” [2], expressando as decisões políticas fundamentais de um País. Por consubstanciarem “a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico” [3], os princípios são aplicados mediante ponderação. As regras, por serem mais rígidas e específicas, aplicam-se dentro de um modelo de “tudo ou nada” [4].
Dadas essas características e distinções, se um juiz se deparar com a incompatibilidade entre uma regra infraconstitucional e uma regra constitucional, caberá a ele, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, declarar inconstitucional a primeira. Trata-se de um juízo de escolha da regra constitucional em detrimento da regra infraconstitucional orientada por uma questão de hierarquia sistêmica. Embora as regras comportem interpretação, usualmente [5] há um “menor grau de ingerência do intérprete na atribuição de sentidos aos seus termos e na identificação de suas hipóteses de aplicação” [6]. Considerando que a Constituição Federal de 1988 possui inúmeras normas jurídicas decorrentes de regras [7], não seria prudente retirar do juiz a possibilidade de declarar uma regra inconstitucional quando esta contrariasse uma regra prevista pela Constituição.
Por outro lado, como os princípios funcionam “como uma instância reflexiva, permitindo que os diferentes argumentos e pontos de vista existentes na sociedade, acerca dos valores básicos subjacentes à Constituição, ingressem na ordem jurídica e sejam processados segundo a lógica do Direito” [8], se o juiz se deparar com alguma questão constitucional em que haja colisão entre princípios, deverá ele suspender o julgamento e submeter a questão ao tribunal ao qual está jurisdicionado.
Em outras palavras, tratando-se de questão constitucional que demande a obtenção de uma regra para o caso concreto em função, por exemplo, da técnica da ponderação a partir da máxima da proporcionalidade (Alexy [9]) ou mediante a primazia de um dos princípios em função do balancing realizado à luz das circunstâncias do caso (Dworkin [10]), é recomendável submeter ao tribunal o juízo de conveniência e oportunidade de levar a matéria diretamente ao Supremo.
Com isso, evita-se o recrudescimento do já verificado “panprincipialismo” [11] e do “ativismo judicial”, cujos efeitos são quase sempre nefastos ao primado da isonomia. De fato, dados os diversos princípios abertos [12] previstos na Constituição (vg.: artigo 1º, III, dignidade da pessoa humana; 37, caput, moralidade; proteção à confiança e segurança jurídica, artigo 5º, etc.), os juízes que se deparam com questões complexas como as do aborto; pesquisas com células tronco; obrigação do Estado no fornecimento de medicamentos ou tratamentos de saúde; casamento homoafetivo, etc., dificilmente decidem da mesma forma e raramente seguem o mesmo método decisório (ponderação, balancing, subsunção, etc.) para chegar ao seu entendimento. Em casos tais, denominados por boa parte da doutrina de hard cases [13], parece recomendável submeter a questão ao tribunal de segundo grau, de modo que a matéria possa eventualmente ser levada diretamente ao Supremo para a pacificação e uniformização da controvérsia no território nacional.
Nesse sentido, embora não diferenciem regras de princípios para fins de acesso à Corte Constitucional, tanto a Alemanha [14] quanto a Áustria [15] preveem a possibilidade de os Tribunais ordinários encaminharem questões constitucionais surgidas em casos concretos às Cortes Superiores para que as apreciem em sede de controle concentrado.
Nos casos de Espanha [16], Itália [17] e Uruguai [18], há previsão para que um juiz de primeiro grau (ou qualquer órgão judicial) instaure o controle de constitucionalidade perante a Suprema Corte. Trata-se de uma modalidade híbrida de controle quanto à forma, em que se submete a matéria diretamente à Corte Constitucional (de forma concentrada), mas mediante um incidente criado a partir de um processo subjetivo (caso concreto). Do exame em concreto surge uma questão incidental abstrata a ser submetida à análise da Corte Constitucional. Nesses países não há previsão para o próprio juiz da causa afastar a norma por inconstitucionalidade, razão por que, ao contrário do que ocorre no Brasil, não se trata de controle difuso, mas de controle concentrado.
A proposta ora apresentada não é tão abrangente quanto o modelo verificado em Espanha, Itália e Uruguai — relativamente aos legitimados para acessar o Supremo. Em síntese, sugerimos:
1 — A manutenção do controle difuso de constitucionalidade para conflito entre regras (o que não existe nos supracitados países) e a possibilidade de o juiz submeter a questão ao tribunal de segundo grau para a apreciação da relevância do tema quando se tratar da definição de conceitos constitucionais abertos ou ponderação entre princípios;
2 — O tribunal encaminhará a questão ao STF se entender tratar-se de questão constitucional relevante;
3 — Se o tribunal entender que se trata de regra constitucional ou mesmo de aplicação de conceito cuja relevância não mereça apreciação do STF ou que já tenha sido definido por aquela corte, devolverá o processo para que o juiz prossiga com o julgamento;
4 — Não se cogita de permissão ao juiz de primeiro grau para acessar diretamente o STF;
5 — Em qualquer caso, o interessado poderá recorrer de decisões do juiz de primeiro grau ao Tribunal, tanto quando a matéria for decidida ao entendimento de que se trata de regra constitucional quanto se se entender cuidar-se de princípios.
6 — O acórdão do Tribunal no sentido de tratar-se de matéria constitucional relevante deve ser breve e atender a requisitos a serem expressamente previstos de forma a evitar considerações discursivas. Desse acórdão — independente da conclusão alcançada — não caberá recurso;
7 — Se o STF entender que não há relevância, devolverá o processo para continuidade de julgamento em primeira instância.
8 — Entendendo-se haver relevância, o STF determinará o processamento da questão com o mesmo rito e consequências das ações diretas de (in)constitucionalidade. Finalizado o julgamento, o STF devolverá o processo à origem para continuidade de julgamento das demais (e eventuais) questões infraconstitucionais subjacentes à lide.
Em conclusão, se há algo de positivo decorrente de momentos graves e excepcionais como o de que ora se cuida é que eles trazem consigo a possibilidade de reflexão em torno de conceitos (e procedimentos jurídicos) de certa forma naturalizados. Nesse sentido, visando a abreviar o tempo de definição de questões constitucionais relevantes, bem como impedir a prolação de decisões conflitantes sobre temas sensíveis ao país, conclamamos a comunidade jurídica a refletir em torno da criação de sistema em que juízes (indiretamente) e tribunais ordinários (diretamente) instaurem, mediante procedimento específico, o controle de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal nos denominados hard cases.
[1] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional Tributário. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, 93/94.
[2] ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional Tributário. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 92.
[3] BARROSO, Luís Roberto, Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo, 5ª Ed, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 238.
[4] ATIENZA, Manueal, O sentido do direito, Escolar Editora, 2013, p. 90.
[5] Não se desconhece a crítica da hermenêutica filosófica a essa afirmação. STRECK dá o exemplo de um conflito entre regra e princípio em que a regra não é aplicada no modelo “tudo ou nada”, mas interpretada à luz de sua conformidade com princípios constitucionais. O caso tratava de uma criança que precisava da doação de parte do fígado de sua mãe para sobreviver. Ocorre que a mãe tinha 16 anos e a lei espanhola (regra) impedia claramente a doação de órgão por quem tivesse menos de 18 anos. Assim, o caso concreto só poderia ser decidido a partir de uma dimensão interpretativa/argumentativa, no sentido de que a regra deveria ser lida de acordo com algum ideal de justiça (direito à vida ou livre disposição do próprio corpo, por exemplo, extraídos de princípios constitucionais). Se fosse aplicado o modelo do “tudo ou nada”, a criança morreria (aplicação da regra) ou a regra seria retirada do ordenamento jurídico por inconstitucionalidade (não aplicação da regra). Assim, o jurista defende que as regras é que seriam “porosas” por serem normas gerais e abstratas que não conseguem prever todas as situações fáticas para as quais têm aplicação. Nesse sentido, os princípios é que “fechariam” a interpretação dessas regras a partir da consideração do caso concreto, isto é, da dimensão factual do direito. Vide: STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, 3ª Ed – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pp. 278/284 e 308.
[6] BARROSO, Luís Roberto, Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo, 5ª Ed, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 241.
[7] Por exemplo: artigo 14, § 3º, VI, “a” segundo o qual a idade mínima para alguém se candidatar a Presidente da República é de 35 anos; artigo 195, § 5º, segundo o qual nenhum benefício da seguridade social será criado sem a indicação da fonte de custeio
[9] ALEXY, Robert, Teoría de la argumentación jurídica: la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.
[11]STRECK, Lenio Luiz, “Zimermann, Schmidt, Streck e Otavio: todos contra o pan—principialismo, Senso Incomum”, ConJur, 2015: http://www.conjur.com.br/2015—mar—05/senso—incomum—balde—agua—fria—pan—principialismo—clausulas—gerais2
[12] Abertos significando que os princípios têm o condão de trazer para a linguagem do direito os valores de determinada sociedade, os quais inevitavelmente variam de tempos em tempos. Observe—se que essa abertura dos princípios aos valores compartilhados pela sociedade não significa que a interpretação a respeito deles seja aberta ou livre.
[13] Os casos difíceis podem decorrer: (i) da ambiguidade da linguagem existente em princípios ou cláusulas abertas; (ii) de desacordos morais razoáveis e (iii) da colisão entre direitos ou princípios constitucionais (direito à informação/liberdade de expressão x direito à privacidade). Vide BARROSO, Luís Roberto, Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo, 5ª Ed, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 348.
Hamilton Dias de Souza é advogado, fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) e especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2020, 19h25