Veículo: Folha de São Paulo, São Paulom 18.mar.2016. Caderno Opinião a 3
Autor(es): Hamilton Dias de Souza e Ives Gandra da Silva Martins
Há dias circulavam rumores de que o alto escalão do governo federal e a cúpula do PT estudavam a nomeação do ex-presidente Lula, acusado de envolvimento em casos de corrupção, para o cargo de ministro. Tais boatos se concretizaram na última quarta (16).
O objetivo da manobra, ao que tudo indica, é garantir ao ex-presidente a prerrogativa de “foro privilegiado”. Como consequência, as denúncias contra ele dirigidas deixariam de ser examinadas pela Justiça Federal comum, evitando que o caso chegue às mãos do juiz Sergio Moro. O STF (Supremo Tribunal Federal) é que decidiria a questão.
A Constituição confere à presidente o poder de escolher seus ministros. Trata-se, porém, de uma faculdade apenas aparente, pois sujeita a limitações rígidas, decorrentes, primordialmente, do fato de que a atuação da administração deve ser pautada por fins e interesses públicos, nunca particulares.
De fato, os poderes constitucionalmente conferidos ao governante são garantidos a ele na qualidade de integrante do Estado. Existem apenas para que possa cumprir seu dever de atender aos interesses da coletividade.
São estes, nunca é demais recordar, que justificam a existência do próprio aparelho estatal e da posição ocupada.
Justamente por isso é que o artigo 37 da Constituição determina que as autoridades conduzam seus atos com impessoalidade e moralidade. Simpatias pessoais e/ou interesses de facções e grupos ligados ao governante não podem interferir na gestão da coisa pública.
Diante desse quadro, não há dúvidas de que a nomeação do ex-presidente esbarra nas limitações referidas. Isso porque realizada com objetivo preponderante de protegê-lo ou de amenizar a sua complicada situação, na qualidade de pessoa próxima à presidente. Como tal, é completamente inválida.
O STF é firme em reconhecer que o tratamento privilegiado que não decorra de “causa razoavelmente justificada” implica inadmissível “quebra de moralidade”.
A Corte Suprema, a propósito, já analisou questão idêntica, decidindo que: “A nomeação para o cargo de assessor… é ato formalmente lícito. Contudo, no momento em que é apurada a finalidade contrária ao interesse público, qual seja, uma troca de favores…, o ato deve ser invalidado, por violação ao princípio da moralidade administrativa e por estar caracterizada a sua ilegalidade, por desvio de finalidade”.
A propósito, não se diga que a presença do ex-presidente no corpo ministerial pode contribuir para amenizar a grave crise de legitimidade do governo. Nem que pode, de alguma forma, auxiliar na reversão da cambaleante situação econômica do país.
Afinal, se assim fosse, a nomeação teria ocorrido muito antes, já que esse quadro se arrasta há meses.
A situação foi agravada pela divulgação do diálogo entre os dois protagonistas, no qual, nitidamente, fica evidenciado que o intuito da nomeação foi proteger Lula do pedido de prisão preventiva que seria examinado pelo juiz Sergio Moro.
Tal gravação comprova que foram feridos quatro princípios fundamentais da administração pública, elencados pela Constituição Federal.
São eles: o princípio da moralidade (nomeação para ministro de Estado de um investigado por corrupção), da impessoalidade (nomeação no interesse pessoal do amigo, e não no interesse público), da eficiência (nomeação exclusivamente para blindá-lo, não em virtude dos atributos para o exercício do cargo) e da legalidade (desvio de finalidade na nomeação).
O juiz Moro, por sua vez, atendeu ao princípio da publicidade ao retirar o sigilo da gravação, já que o interesse público justifica a divulgação da conversa.
A nomeação de Lula ao cargo de ministro, portanto, com evidente desvio de finalidade, conduz a uma questão da mais alta relevância: não constitui, ela própria, ato de improbidade administrativa capaz de motivar o impeachment de Dilma?
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 81, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra
HAMILTON DIAS DE SOUZA, 72, é jurista e mestre em direito pela USP