Veículo: Revista Dialética de Direito Tributário nº 115 (abril/2005, p. 97)
Autor(es): Mário Luiz Oliveira da Costa
A Lei Complementar nº 118, publicada no Diário Oficial de 09/02/2005, alterou alguns dispositivos do Código Tributário Nacional. Os dispositivos tratados por esta lei complementar referem-se, em sua quase totalidade, a temas correlatos àqueles regulados pela nova “Lei de Falências” (Lei nº 11.101/2005, publicada no DOU da mesma data), tendo ambos os projetos tramitado conjuntamente no Congresso Nacional[1].
De fato, o art. 3º da LC 118/2005 disciplinou matéria que não guarda qualquer relação com a Lei nº 11.101/2005, encontrando-se assim redigido:
“Art. 3º Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei.”
O artigo 4º da Lei Complementar, por sua vez, determina que a mesma entre em vigor cento e vinte dias após sua publicação, “observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional[2]”.
Como se vê, ao invés de alterar a redação do próprio artigo 168, I do Código Tributário Nacional, optou-se por “interpretá-lo” no sentido de que a extinção do crédito tributário, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, ocorreria quando do próprio pagamento antecipado (de modo que começaria a fluir desde então o prazo para pleitear a respectiva devolução, esgotando-se em 5 anos) e não quando de sua efetiva homologação (hipótese em que o prazo prescricional se iniciaria apenas a partir desta, totalizando 10 anos nos casos de homologação tácita).
O objetivo inequívoco, como comprova a ressalva constante do art. 4º da mesma LC 118 (igualmente de pretensa natureza interpretativa, ao “explicitar” a suposta aplicabilidade, ao art. 3º, do disposto no art. 106, I do CTN), foi o de possibilitar a aplicação retroativa da “interpretação” havida.
Cumpre, assim, examinar se seria legítima a forma engendrada para afastar a denominada “tese dos dez anos” para a recuperação dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em relação aos pagamentos passados e futuros.
1. As chamadas leis interpretativas
Prevê o art. 106, I do CTN, como antes referido, que a lei aplica-se a ato ou fato pretérito quando “expressamente interpretativa”, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados.
A questão atinente às chamadas leis interpretativas já foi objeto de inúmeras manifestações doutrinárias, no que tange à possibilidade tanto da própria existência, em nosso sistema jurídico, de leis exclusivamente desta natureza, quanto de seu efeito retroativo.
Carlos Maximiliano alerta que a interpretação autêntica (emanada pelo próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance se declare) “arranha o princípio de Montesquieu”, pois “transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los por meio de uma disposição geral”. Resume que “se a lei tem defeitos de forma, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o caráter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado, a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juízes; não tem mais razão de ser; coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje”[3].
O Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, em trabalho intitulado “O princípio da irretroatividade da lei tributária”[4], afirma, com fundamento na lição de Pontes de Miranda[5], que “não há falar, na ordem jurídica brasileira, em lei interpretativa com efeito retroativo”. Assevera o ilustre Ministro que:
“A questão deve ser posta assim: se a lei se diz interpretativa e nada acrescenta, nada inova, ela não vale nada. Se inova, ela vale como lei nova, sujeita ao princípio da irretroatividade. Se diz ela que retroage, incorre em inconstitucionalidade e, por isso, nada vale.” (ob. cit., p. 20)
Roque Antônio Carrazza também entende que, “no rigor dos princípios, não há leis interpretativas”, pois não seria dado a uma lei o poder de interpretar outra lei, sendo a função de interpretar leis “cometida a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica as leis aos casos concretos submetidos à sua apreciação, definitivamente e com força institucional”. Admite o renomado autor, tão somente, a retroatividade da lei tributária que corrija situação de inconstitucionalidade (ao fundamento de que a lei anterior, inconstitucional, não seria uma verdadeira lei, mas apenas um simulacro de lei) e, ainda assim, desde que não implique agravamento à situação do contribuinte.[6]
Já Luciano Amaro admite a possibilidade de lei interpretativa, mas a considera inútil, pois, se der ao preceito interpretado o mesmo sentido inferido pelo juiz, será inócua e, se der interpretação em sentido distinto daquele dado pelo juiz, será inoperante por ser retroativa e usurpar a função jurisdicional. Tratar-se-á, sempre, no seu entender, de uma lei nova pretendendo regrar o passado e, assim, sujeita a todas as restrições oponíveis às leis retroativas[7].
Hugo de Brito Machadopondera que o art. 106, I do CTN não foi ainda declarado inconstitucional, de modo que continua integrando o nosso ordenamento jurídico. Admite, assim, a existência de leis meramente interpretativas, que não inovariam propriamente, mas apenas se limitariam a esclarecer dúvida atinente ao dispositivo anterior. Ressalva, contudo, não ser permitido ao Estado “valer-se de seu poder de legislar para alterar, em seu benefício, relações jurídicas já existentes”[8].
Valdir de Oliveira Rocha, de seu turno, entende que a expressão “interpretativa” de que cuida o art. 106, I do CTN deve ser entendida como “determinadora de conceito”, de modo que seria aplicável quando objetivasse determinar determinado conceito e, de qualquer modo, admitida sua aplicação retroativa apenas em matéria de remissão e de anistia[9].
Pois bem. Como seria de se esperar em já longos tempos de verdadeira “inflação legislativa” atinente a temas de natureza fiscal, não é incomum nos defrontarmos com dispositivos legais pouco claros ou obscuros, que efetivamente necessitem de uma melhor explicitação de seu conteúdo, isto é, da própria mens legis. Esta é a inegável realidade dos fatos, que rotineiramente aflige a todos os operadores do direito. Nestas hipóteses específicas do direito tributário[10], em que se verifique a efetiva necessidade de aclarar o contido em determinado dispositivo legal, penso que possa ser utilizado o mecanismo das chamadas leis interpretativas, mesmo porque, conforme a antes referida ponderação de Hugo de Brito Machado, o art. 106, I do CTN jamais foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, de modo que continua plenamente válido e eficaz.
Isto não significa possa tal dispositivo ser lido de forma isolada, como se não integrasse um sistema jurídico que assegura direitos e garantias intransponíveis. Há de se ter presente que as normas fiscais interpretativas são aquelas com natureza predominantemente declaratória de direitos já assegurados pelas normas anteriores, ali interpretadas, mas que deverão sempre operar em favor da segurança jurídica, jamais contra.
Assim, por primeiro, apenas se legitimarão quando verdadeiramente verificada a sua hipótese justificadora, ou seja, a real necessidade de melhor explicitar o contido em determinado dispositivo legal e/ou a sua aplicação a determinadas situações. Este pressuposto de validade é de extrema importância, na medida em que, caso se pretenda dar a roupagem de interpretativa a determinada lei que, na verdade, objetive contornar, inclusive retroativamente, determinado óbice constante da disposição pretensamente interpretada, restará caracterizado manifesto desvio de finalidade, além de inequívoca violação ao próprio art. 106, I do CTN.
Com efeito, o grande risco que as normas interpretativas envolvem diz respeito à possibilidade de virem a ser mal utilizadas. Como todas as demais normas, aquelas interpretativas estarão sempre sujeitas ao crivo do Poder Judiciário, inclusive, preliminarmente, ao exame de validade quanto ao próprio pressuposto de sua edição. Se o legislador qualificar, falsamente, a lei nova como interpretativa, somente para lhe imprimir o desejado efeito retroativo[11], caberá ao Poder Judiciário afastar tal pretensão.
De outro lado, mesmo sendo legítima e exclusivamente interpretativa, não deixará de inovar no mundo jurídico. A norma interpretativa sempre inovará, pois, a partir de sua edição, não mais se verificará a obscuridade até então existente, restando explicitado o real conteúdo do dispositivo interpretado (desde que se trate, realmente, de legítima norma interpretativa).
Justamente por inovar no mundo jurídico, somente poderá fazê-lo de forma retroativa quando mais benéfica aos contribuintes (ou quando não lhes cause quaisquer prejuízos). Afinal, quando menos a título de benefício fiscal, poderia o legislador assim dispor[12]. Já quando for prejudicial aos interesses dos contribuintes, jamais poderá retroagir, em obediência aos princípios da irretroatividade e da segurança jurídica.
Quanto a isso inexiste qualquer controvérsia doutrinária. Conforme adrede demonstrado, é uníssono o entendimento no sentido de não poder a norma real ou supostamente interpretativa retroagir de modo a prejudicar os contribuintes.
Não por outra razão, aliás, já declarou o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, que a Lei nº 9.528/97, “ao explicitar em que consiste ‘a atividade de construção de imóveis’, veicula norma restritiva do direito do contribuinte, cuja retroatividade é vedada”[13], enquanto a Lei nº 9.779/99, por força do princípio constitucional da não-cumulatividade e sendo benéfica aos contribuintes, teria “caráter meramente elucidativo e explicitador”, “nítida feição interpretativa, podendo operar efeitos retroativos para atingir a operações anteriores ao seu advento, em conformidade com o que preceitua o artigo 106, inciso I, do Código Tributário Nacional”[14]. Entendeu a mesma Corte que a igualmente benéfica dispensa constante da MP 2.166-67, de 24/08/2001, da “apresentação, pelo contribuinte, de ato declaratório do IBAMA, com a finalidade de excluir da base de cálculo do ITR as áreas de preservação permanente e de reserva legal, é de cunho interpretativo, podendo, de acordo com o permissivo do art. 106, I, do CTN, aplicar-se a fatos pretéritos”[15].
Por todo o exposto, vê-se que somente restará caracterizada a natureza interpretativa de que cuida o art. 106, I do CTN quando se tratar, efetivamente, de norma regulando matéria que demandava tal providência. Ainda assim, somente poderão retroagir as leis interpretativas que não impliquem quaisquer prejuízos aos contribuintes.
2. O artigo 168, I do CTN e a jurisprudência do STJ
O art. 168, I, do CTN, encontra-se assim redigido (mesmo após o advento da LC 118, pois não foi por ela alterado):
“Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:
I – nas hipóteses dos incisos I e II do art. 165, da data da extinção do crédito tributário;”
Há vários anos tem o Superior Tribunal de Justiça interpretado tal dispositivo no sentido de que, como a efetiva extinção dos créditos tributários atinentes aos tributos sujeitos a lançamento por homologação somente se completa, nos termos do art. 150, § 1º do mesmo Código, quando verificada tal homologação (de forma expressa ou tácita), apenas a partir de então tem início o prazo prescricional para a formulação do respectivo pleito de restituição ou compensação.
De fato, em maio de 1994 entendeu a Segunda Turma do STJ que, em se tratando de tributos com lançamento sujeito a homologação e “não tendo ocorrido a homologação expressa, o direito de pleitear a restituição só ocorrerá após o transcurso do prazo de cinco anos, contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos, contados daquela data em que se deu a homologação tácita” (RESP nº 44.221, Rel. Antônio de Pádua Ribeiro, dentre vários outros julgados da mesma época).
Em 14/03/1995 a questão foi submetida ao exame da Primeira Seção do STJ (que reúne as duas Turmas de Direito Público), tendo sido externado o mesmo entendimento, no sentido de que: “À falta de homologação, a decadência do direito de repetir o indébito tributário somente ocorre, decorridos cinco anos, desde a ocorrência do fato gerador, acrescidos de outros cinco anos, contados do termo final do prazo deferido ao fisco, para apuração do tributo devido” (ERESP nº 42.720, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros).
Igual orientação foi mantida nos milhares de julgamentos que se seguiram desde então acerca da matéria no âmbito do STJ, valendo referir, tão somente no que respeita às reiteradas decisões da Primeira Seção daquele Tribunal, os acórdãos proferidos, dentre vários outros, nos ERESP´s ns. 48.013 (j. em 08/03/1996, Rel. Min. Ari Pargendler); 47.879 (j. em 10/04/1996, Rel. Min. Demócrito Reinaldo); 65.490 (j. em 23/09/1998, Rel. Min. Helio Mosimann); 289.398 (j. em 27/11/2002, Rel. Min. Franciulli Netto); 286.552 (j. em 12/03/2003, Rel. Min. Eliana Calmon); 262.475 (j. em 23/04/2003, Rel. Min. Franciulli Netto); 422.568 (j. em 25/06/2003, Rel. Min. Eliana Calmon); 422.253 (j. em 27/08/2003, Rel. Min. Franciulli Netto); 346.664 (j. em 10/12/2003, Rel. Min. Castro Meira); 421.727 (j. em 26/02/2004, Rel. Min. Eliana Calmon); Rel. Min. 449.751 (j. em 24/03/2004, Rel. Min. José Delgado); 416.266 (j. em 09/06/2004, Rel. Min. João Otávio de Noronha); 545.790 (j. em 23/06/2004, Rel. Min. José Delgado) e 500.231 (j. em 10/11/2004, Rel. Min. José Delgado).
Atualmente, como não poderia deixar de ser, ambas as Turmas de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça têm julgado a matéria neste mesmo sentido e por unanimidade, como se verifica, por exemplo, dos acórdãos proferidos nos autos do RESP nº 667.628 (Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 14/12/2004) e do RESP nº 126.167 (Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em 02/12/2004).
Escuse o leitor a referência a tantos[16] precedentes do STJ acerca do tema, mas tal objetiva afastar, de antemão, eventual alegação no sentido de que a matéria ainda aguardaria definição jurisprudencial. É inegável tratar-se, na hipótese de que se cuida, de matéria já definida em inúmeras e reiteradas decisões, proferidas no decorrer de vários anos pela mais alta corte do país competente para tanto.
Salta aos olhos, assim, a manifesta impertinência da edição de qualquer norma supostamente interpretativa acerca do mesmo tema. Senão, vejamos.
3. Vícios insanáveis do art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005
Quase quarenta anos após a edição do art. 168, I do CTN[17] e, ainda, depois de transcorridos mais de dez anos ao longo dos quais foram proferidas reiteradas decisões pelo Superior Tribunal de Justiça a seu respeito, surge o artigo 3º da Lei Complementar nº 118/2005, pretendendo “interpretar” aquele dispositivo retroativamente e de forma distinta à remansosa orientação do STJ.
Consta da Exposição de Motivos[18] do projeto de lei complementar originário da LC 118 a assertiva de que o projeto de lei ordinária relativo às falências demandaria paralela modificação do Código Tributário Nacional, tendo sido ali consignado que:
“Além das normas pertinentes ao processo falimentar e de recuperação de empresas, o projeto aqui submetido à elevada consideração de Vossa Excelência também veicula normas interpretativas que eliminam dúvidas acerca do alcance de dispositivos do Código Tributário Nacional, com evidentes benefícios para o contribuinte e para a Fazenda Pública federal, estadual e municipal, mormente no que toca à segurança jurídica.”
O trecho supra transcrito é a prova inequívoca de que a suposta interpretação do art. 168, I do CTN foi incluída de forma oportunista no projeto de lei complementar que efetivamente se fazia necessário para adequar o CTN às alterações previstas no projeto da nova lei de falências (o qual já tramitava no Congresso Nacional), com elas não guardando qualquer vínculo. Mais ainda, pretendeu-se dar ao dispositivo em questão roupagem de efetiva norma interpretativa, como se realmente houvesse dúvida acerca de seu alcance que necessitasse ser esclarecida, não tendo havido qualquer menção ao fato de já ter sido a matéria objeto de inúmeras decisões do STJ. Como agravante, tentou-se legitimá-lo com a falsa assertiva de que implicaria “evidentes benefícios para o contribuinte” !
Por primeiro, ao pretender externar suposta interpretação acerca de dispositivo legal já exaustivamente apreciado pelo Poder Judiciário (com o que não mais se verificava qualquer dúvida ou obscuridade a ser sanada), resta claro que o art. 3º da LC 118, ao invés de encontrar fundamento de validade no art. 106, I do CTN, acabou por contrariá-lo frontalmente. Afinal, não mais sendo possível, muito menos necessário, aclarar o que já fora definitivamente aclarado pelo Poder Judiciário, disto resulta inequívoco ter havido má utilização do expediente, sem o alegado amparo do art. 106, I do CTN por tratar-se de hipótese à qual era o mesmo manifestamente inaplicável.
A efetiva necessidade de uma norma interpretativa para o aclaramento da matéria envolvida é condição sine qua non para a validade de qualquer dispositivo editado ao amparo do art. 106, I do CTN. Ausente tal necessidade, será inexoravelmente inválido o dispositivo que falsamente pretendera fundamentar-se na excepcional autorização constante do Código Tributário.
De outro lado, a tentativa de interpretação do art. 168, I do CTN em sentido oposto àquele consolidado no âmbito do STJ caracteriza abuso do poder de legislar e desvio de finalidade do ato legislativo em questão.
Com efeito, sempre que o Estado pretender utilizar meio não adequado para a finalidade envolvida, ou mesmo valer-se de determinado instrumento, método ou procedimento para, contornando vedação legal ou constitucional, atingir indiretamente a mesma finalidade que, por qualquer razão, não lhe seria possível atingir de forma direta, configurar-se-á o desvio de finalidade. Disto resultará, por conseqüência, a nulidade do ato praticado, seja ele de natureza executiva ou legal.
Canotilho qualifica o desvio de finalidade do ato legislativo como “excesso de poder legislativo”, demonstrando ser igualmente aplicável aos atos legislativos a figura do desvio de poder dos atos administrativos e ressaltando que “sempre que a norma atribui a uma autoridade ou órgão de administração um poder com vista a determinado fim (condicionante do exercício da sua competência) e essa autoridade ou órgão prossegue fins distintos dos fixados pela norma, a decisão ou deliberação (acto administrativo) que adopte deve considerar-se viciada de nulidade”[19].
Como alerta Miguel Reale, “alegar-se-á que a lei pode tudo, até mesmo converter o vermelho em verde, para eliminar proibições e permitir a passagem de benesses, mas há erro grave nesse raciocínio. As vedações constitucionais, quando ladeadas em virtude de processos oblíquos, caracterizam desvio de poder e, como tais, são nulas de pleno direito. Não se creia que só haja desvio de poder por parte do Executivo”, pois o ato legislativo “não escapa da mesma increpação se a lei configurar o emprego malicioso de processos tendentes a camuflar a realidade, usando-se dos poderes inerentes ao ‘processo legislativo’ para atingir objetivos que não se compadecem com a ordem constitucional”[20].
As lições de Canotilho e Miguel Reale[21] aplicam-se como luva ao caso concreto. Camuflou-se a realidade em processo oblíquo cujo único objetivo, ao invés de verdadeiramente interpretar dispositivo legal que justificasse tal providência, foi o de anular, inclusive retroativamente, entendimento jurisprudencial que se mostrava benéfico aos contribuintes e prejudicial aos interesses do fisco. Enquanto, na referida EM 152/MF, declara-se que o dispositivo em questão teria o condão de (a) eliminar dúvidas acerca do alcance do art. 168, I do CTN, (b) beneficiar o contribuinte e a Fazenda Pública e (c) homenagear a segurança jurídica, vê-se que, na realidade, (i) as supostas dúvidas já haviam sido há muito solucionadas pelo STJ, (ii) implicando a nova interpretação manifesto prejuízo aos contribuintes e (iii) desrespeito à segurança jurídica.
Ou seja, adotou-se um mecanismo próprio para determinada finalidade, declarou-se que o objetivo pretendido seria efetivamente aquele adequado para o mecanismo adotado, mas, na verdade, o objetivo perquirido foi exatamente oposto àquele declarado e ao fixado pela norma excepcional que autorizaria a sua adoção. O vício de inconstitucionalidade daí resultante é patente, como aponta Caio Tácito:
“O abuso do poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legítima destinação.”[22]
Pelas mesmas razões, resta claro que o art. 3º da LC 118 não apenas usurpou a competência do Poder Judiciário (como já alertou o Min. Carlos Velloso, no Brasil “quem interpreta a lei, em caráter definitivo, é o Poder Judiciário”[23]), como foi ainda além, pois desobedeceu e afrontou a orientação que já havia sido firmada pelo Superior Tribunal de Justiça acerca do mesmo tema, contrariando os princípios da segurança jurídica, boa-fé e moralidade (além da irretroatividade) que, a teor do art. 37 da Constituição Federal, devem pautar as relações entre a Administração Pública e os administrados. O lobo travestiu-se de lebre: por dispositivo declarado como apenas interpretativo e benéfico aos contribuintes, pretendeu-se, marotamente, anular a interpretação já firmada pelo STJ, esta sim benéfica aos contribuintes.
Nem se alegue que a interpretação dada pelo STJ ao art. 168, I do CTN não seria correta. Não se cuida, a esta altura dos acontecimentos, de averiguar se o entendimento firmado pelo STJ foi ou não o mais adequado. Aliás, sequer se cogita de qualquer alteração da jurisprudência do STJ, mesmo porque, à vista das peculiaridades envolvidas, igualmente atentaria contra a segurança jurídica[24]. Trata-se, no presente caso, de assegurar a necessária obediência à orientação definitivamente firmada pelo Poder Judiciário acerca de determinado tema.
O eventual benefício que teria o erário caso atingisse a Administração Pública o propósito pretendido pelo art. 3º da LC 118 (obrigação de devolver os valores indevidamente recolhidos a título de tributos sujeitos a lançamento por homologação apenas no prazo de 5 anos) seria certamente desprezível em comparação aos graves efeitos que uma postura governamental nociva, contraditória, arrogante, desrespeitosa em relação ao Poder Judiciário e aos vários princípios constitucionais antes referidos impinge ao país, às suas instituições e ao seu povo. O contribuinte tem o direito de confiar na Administração[25], não podendo ser por ela surpreendido e prejudicado quando pautou sua conduta, organizou suas atividades, provisões, etc. conforme a jurisprudência pacífica da mais alta corte do país competente para o exame de determinada matéria.
O fato de que se cuida é extremamente grave. Estamos diante de mais uma séria afronta aos direitos dos contribuintes (na esteira de tantas que têm ocorrido nos últimos tempos), mas, desta vez, também o Poder Judiciário foi diretamente afrontado, sendo indispensável a pronta resposta de sua parte, sob pena de restarem prejudicados o próprio Estado Democrático de Direito, a harmonia e a independência entre os Poderes. O Poder Executivo precisa aprender a acatar as decisões do Poder Judiciário, precisa efetivamente implementar os procedimentos de transparência, boa-fé e não surpresa de que tanto se fala nos pronunciamentos oficiais e que soam tão convincentes aos leigos e aos incautos.
A Administração Pública não pode faltar com a ética, não pode desobedecer – direta ou indiretamente, valendo-se de subterfúgios ou estratagemas tortuosos – as decisões judiciais que se mostrem contrárias aos seus interesses, sob pena de ruir todo o sistema jurídico, além de ficar moralmente impedida de coibir igual postura por parte dos contribuintes.
Se tanto não bastasse, cumpre apontar que, se o desiderato da Administração fosse realmente atingido, tal implicaria distorções concorrenciais gravíssimas (contrariando os princípios da isonomia e da neutralidade da tributação para fins concorrenciais), pois os contribuintes, ainda que integrantes de um mesmo setor de atividade econômica, ver-se-iam em situações distintas, com profundos reflexos em suas situações patrimoniais conforme tivessem ou não tido a “boa sorte” de já se encontrarem amparados por uma das milhares de decisões finais já proferidas pelo STJ acerca da matéria.
Como ficariam, por exemplo[26], os contribuintes do setor cafeeiro que ainda não tivessem obtido decisões finais em seus processos de recuperação dos valores indevidamente recolhidos mais de cinco anos antes da formulação dos respectivos pleitos, a título da cota de contribuição ao IBC[27], frente àqueles que já as obtiveram e puderam recuperar em definitivo os respectivos montantes ?!
Por último, registre-se que não será possível, sequer, legitimar a eventual aplicação do disposto no art. 3º da LC 118 apenas em relação aos pagamentos ocorridos após a sua publicação[28], pois, por todas as razões já expostas, os vícios de que padece são insanáveis. Ademais, tal implicaria legislar positivamente em sentido distinto daquele pretendido pelo legislador, o que não se admite em nosso sistema jurídico. Se a intenção for de que os pagamentos de tributos sujeitos a lançamento por homologação passem a implicar a imediata extinção do crédito tributário, deverá ser alterada a própria redação do art. 168, I do CTN, na medida em que a redação atual já teve os seus efeitos jurídicos definidos pelo Poder Judiciário, conforme exaustivamente demonstrado.
Exatamente este procedimento foi adotado, pela própria LC 118, em relação ao artigo 174, I do CTN. De fato, a redação original deste dispositivo era no sentido de que a prescrição da ação para a cobrança do crédito tributário seria interrompida, dentre outras hipóteses, pela “citação pessoal feita ao devedor”, enquanto o art. 8º, § 2º da Lei nº 6.830/80 prevê que tal interrupção se daria pelo simples “despacho do juiz, que ordenar a citação”. Considerando os precedentes do STJ no sentido de que a previsão constante da Lei nº 6.830/80 contrariaria o disposto no art. 174, I do CTN[29], alterou-se, pela mesma LC 118, a redação deste último dispositivo, a fim de ficar consoante à redação daquele (interrupção da prescrição pelo despacho que ordenar a citação em execução fiscal)[30]. Já no que respeita ao art. 168, I do CTN, ao invés de se adotar o mesmo procedimento, optou-se por uma “solução mágica”, tida como passível de legítima aplicação retroativa.
Diz o adágio que “quem tudo quer, tudo perde”. No afã de, maquiavelicamente, neutralizar a jurisprudência do STJ também em relação aos pagamentos passados, perdeu a Administração a oportunidade de alterar a redação do próprio art. 168, I do CTN e, agora, caso assim venha a pretender, deverá apresentar novo projeto de lei complementar para tal finalidade. Enquanto subsistir a redação atual do art. 168, I do CTN, contudo, continuará aplicável in totum, igualmente e por conseqüência, a interpretação que lhe foi dada pelo Superior Tribunal de Justiça.
4. Conclusões
À vista de todo o exposto, conclui-se que:
a) O nosso ordenamento jurídico (art. 106, I do CTN) admite a utilização das chamadas leis interpretativas em matéria fiscal. Todavia, estas apenas se legitimarão quando verdadeiramente interpretativas, isto é, quando tiverem por objeto dispositivo cujo conteúdo realmente necessite ser aclarado. Outrossim, ainda que legitimamente interpretativas, somente poderão retroagir quando não prejudicarem os contribuintes.
b) O art. 3º da LC 118/2005 contrariou o disposto no próprio art. 106, I do CTN em que pretendeu se fundamentar, por ser manifestamente incabível a edição de lei interpretativa tendo por objeto dispositivo legal que já fora exaustivamente interpretado pelo Poder Judiciário, em especial quando a suposta interpretação pretendida mostra-se contrária à pacífica jurisprudência atinente ao tema.
c) O dispositivo em questão é, ainda, inconstitucional, pois, ao pretender contornar a jurisprudência já consolidada acerca da matéria, incorreu em manifesto desvio de finalidade e abuso do poder legislativo, usurpando a competência do Poder Judiciário, desobedecendo à orientação firmada pelo STJ e afrontando aquele Tribunal, em clara violação aos princípios da independência e harmonia dos poderes, segurança jurídica, irretroatividade, boa-fé, moralidade, isonomia e neutralidade da tributação para fins concorrenciais.
d) A gravidade da situação e a ousadia demonstrada pela Administração impõem uma pronta resposta por parte do Poder Judiciário.
e) Sendo nulo o art. 3º da LC 118/2005 e não tendo sido alterada a redação do art. 168, I do CTN, este último subsiste integralmente, sem qualquer inovação[31] e com todos os efeitos jurídicos daí decorrentes, inclusive no que respeita à plena aplicabilidade da interpretação consolidada na última instância judicial competente para tanto.
f) Na pior das hipóteses, caso, por absurdo, se entenda possível afastar os vícios insanáveis de que padece o art. 3º da LC 118/2005, somente poderia ser a suposta “interpretação” ali contida aplicável aos pagamentos[32] verificados na sua vigência. Isto porque jamais poderia retroagir para, em prejuízo aos interesses dos contribuintes, atribuir a fatos pretéritos efeitos jurídicos distintos daqueles resultantes da lei então em vigor, em obediência aos princípios da segurança jurídica e irretroatividade.
Mário Luiz Oliveirada Costa – artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 115 (abril/2005, p. 97)
[1] A LC 118 alterou várias questões atreladas, em maior ou menor dimensão, às inovações da nova “Lei de Falências” e à cobrança de tributos (que não serão examinadas nesta oportunidade), tais como: regras atinentes à responsabilidade por sucessão de estabelecimentos adquiridos em processo de falência ou de recuperação judicial; critérios gerais de parcelamento de créditos tributários de contribuintes em recuperação judicial; interrupção da prescrição pelo despacho que ordenar a citação em execução fiscal; presunção de fraude na alienação de bens após regular inscrição do crédito tributário como dívida ativa; ordem de preferência do crédito tributário no processo de falência; e admissibilidade da “penhora on line”, com as ressalvas ali indicadas.
[2] “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;”
[3] Hermenêutica e aplicação do direito, 18ª ed., Revista Forense, 1999, ps. 93/94 (1ª edição em novembro de 1924).
[4] Revista Trimestral de Direito Público nº 15/1996 – Malheiros Editores, págs. 13/23.
[5] Expõe o i. autor que: “O legislador não interpreta a lei definitivamente, mesmo porque, promulgada a lei, o que vale é a mens legis. A mens legislatoris é de pouca valia. É de Pontes de Miranda a lição: ‘15. Leis interpretativas. Em sistemas jurídicos, que têm o princípio da legalidade, da irretroatividade das leis e da origem democrática da regra jurídica, não se pode pensar em regra jurídica interpretativa, que, a pretexto de autenticidade da interpretação, retroaja’ (Comentários à Constituição de 1967 com a EC n. 1/69, 2ª ed., RT, 1971, V/99, p.103).’”
[6] Curso de Direito Constitucional Tributário, 16ª ed., Malheiros, 2001, ps. 307/308.
[7] Direito Tributário Brasileiro, 9ª ed., Saraiva, 2003, p. 197.
[8] Curso de Direito Tributário, 25ª ed., Malheiros, 2004, ps. 107 e 109.
[9] Comentários ao Código Tributário Nacional – coord. Ives Gandra da Silva Martins, 3ª ed., Saraiva, 2002, ps. 63/64.
[10] No que respeita aos demais ramos do direito, poder-se-á eventualmente concluir noutro sentido, à vista de suas próprias especificidades.
[11] Como alerta Zelmo Denari – Curso de Direito Tributário, 8ª ed., Atlas, 2002, p. 157 (fundamentando-se em Baudry Lacantinerie – Précis de droit civil, Paris, 1912, p. 39).
[12] Destaca-se o seguinte trecho da lição de Hugo de Brito Machado: “Importante é observar que não existe garantia constitucional de irretroatividade das leis para o Estado. Essa garantia, como acontece com as garantias constitucionais em geral, existe apenas para a proteção do particular contra o Estado. Se existisse garantia de irretroatividade para proteger o Estado certamente as leis de anistia não poderiam existir.” (ob. cit., p. 108)
[13] RESP nº 440.994, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 25/02/2003.
[14] RESP nº 435.783, Rel. p/ Acórdão Min. Castro Meira, j. em 19/02/2004.
[15] RESP nº 587.429, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 01/06/2004.
[16] E, ainda assim, poucos, em comparação às inúmeras outras decisões proferidas no mesmo sentido, tanto por aquela quanto pelas demais Cortes pátrias.
[17] Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
[18] Nº 152/MF, datada de 29/07/2003 e assinada pelo Sr. Ministro da Fazenda.
[19] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Almedina, Coimbra, 1995, pág. 1.015).
[20] Abuso do poder de legislar – RDP 39/40, julho/dezembro de 1976, RT, ps. 76/77.
[21] Assim como as severas críticas, dentre outros, de Carlos Maximiliano, Carlos Mário da Silva Velloso e Roque Antônio Carrazza, antes referidas.
[22] Temas de Direito Público (estudos e pareceres), Renovar, 1997, p. 193 – 1º volume.
[23]Ob. cit., p. 20.
[24] Aplicar-se-iam integralmente à aventada hipótese as muito bem postas considerações constantes do destemido voto proferido pelo i. Min. Humberto Gomes de Barros quando do julgamento do AgRg no RESP nº 382.736.
[25]Jesús González Perez, El Principio General de la Buena Fé en el Derecho Administrativo, 1ª ed., Madrid: Civitas, 1983, pág. 31.
[26] Apenas um dentre os milhares de exemplos de que se poderia cogitar.
[27] Declarada inconstitucional pelo Plenário do STF – RE nº 198.554-2, Rel. Min. Carlos Velloso.
[28] Ou mesmo, eventualmente, apenas aos tributos cujos fatos geradores tenham ocorrido a partir de então.
[29]ERESP 85.144 (Rel. Min. José Delgado), RESP nº 603.590 (Rel. Min. Eliana Calmon) e RESP nº 175.223 (Rel. Min. Castro Meira), dentre vários outros.
[30] Ressalve-se não ser objeto do presente trabalho examinar se a alteração do artigo 174, I do CTN foi adequada, ou mesmo se padece de alguma irregularidade, mas, ao menos, não foi indevidamente utilizada para tanto suposta norma interpretativa e nem se pretendeu a sua aplicação retroativa.
[31] Já se se tratasse de dispositivo legitimamente interpretativo, verificar-se-ia a inovação, conforme antes demonstrado.
[32] Ou mesmo, eventualmente, aos fatos geradores.