Autor(es): Jimir Doniak Jr e Douglas Guidini Odorizzi
I – Reflexões iniciais
O mundo atualmente passa por grandes transformações. As relações comerciais entre os países aumentam cada vez mais, é possível a comunicação com praticamente qualquer pessoa a qualquer momento, capitais podem ser movimentados pelo mundo instantaneamente, certas empresas têm orçamentos superiores ao PIB de diversos países, os efeitos da poluição gerada em um país podem ser sentidos em outros, acordos regionais de comércio são formados com o intuito de obter vantagens frente a outros competidores e gerar maior riqueza. É o chamado fenômeno da globalização.
A conseqüência é a maior interdependência entre os países, com reflexos nas mais diversas áreas, da economia ao meio-ambiente. O direito não poderia passar – e não passa – incólume por esse processo. Também ele tem sofrido suas conseqüências e acompanhado essas transformações. Não poderia mesmo ser de outro modo: se a sociedade passa por mudanças, se surgem novas condições, se diferentes valores se fazem presente; o direito vem a seguir, trazendo normas que disporão sobre essa nova realidade e sofrendo influência de novos valores na interpretação do ordenamento.
A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, trouxe dispositivos que levavam em consideração essas alterações, então já em pleno desenvolvimento. Assim, logo o artigo 1º afirma, em seu inciso I, que a República Federativa do Brasil tem como um dos seus fundamentos a soberania. O artigo 4º, ainda dentro do Título I, sobre os princípios fundamentais, prevê aqueles que devem reger a República Brasileira em suas relações internacionais. Nele, junto com a independência nacional (inc. I), a prevalência dos direitos humanos (inc. II) e a defesa da paz (inc. VI), entre outros princípios, está o previsto no inciso IX: a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Ele deve pautar as relações internacionais do Brasil. O parágrafo único, por sua vez, dispõe que a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Desse modo, a própria Constituição prescreve que o Brasil deve cooperar com outros povos, o que o obriga a participar das relações internacionais, integrando-se em um mundo cada vez mais interdependente, tendo como objetivo final o progresso da humanidade, a paz entre os povos e a dignidade da pessoa humana. Tais objetivos, segundo se acredita atualmente, serão alcançados com mais facilidade com o incremento das relações comerciais mundiais[3]. Com isso, os povos tornam-se mais próximos e dependentes uns dos outros e os acontecimentos ocorridos em um país passam a interessar aos demais, forçando a cooperação entre eles. O modo como se dá a inserção nesse novo cenário é, nos termos de direito positivo, com a participação do Brasil em tratados e acordos internacionais.
A conclusão é que a participação do Brasil nas relações internacionais não só é um imperativo econômico e social, já que se torna cada vez mais inviável um país manter-se separado dos demais, mas também uma prescrição jurídica. A celebração de tratados internacionais é um meio (cremos ser o principal) de ser realizado, concretizado, o princípio fundamental do Brasil de cooperar entre os povos para o progresso da humanidade. Por conseqüência, um tratado celebrado pelo Presidente da República, referendado pelo Congresso Nacional e incluído na ordem jurídica por meio de um decreto presidencial impõe-se juridicamente não só por ser uma norma promulgada de acordo com as regras formais existentes para criação de normas jurídicas, mas também por realizar um princípio fundamental da República. Assim, a força de um tratado advém não só de ser uma norma válida no ordenamento jurídico, mas também por realizar concretamente um princípio fundamental.
Se esse entendimento é procedente, como acreditamos ser, a conclusão seguinte parece-nos que não pode ser outra senão que as regras constantes de um tratado, dotadas dessa particular força, só podem ser revogadas pelo meio próprio de revogação de um tratado: a denúncia. Realmente, como poderia um tratado, realizador específico de um princípio fundamental da própria República como um todo, deixar de ter vigência jurídica de outro modo que não pelos meios próprios de revogação dos tratados? A revogação por outro modo significaria menosprezar o próprio princípio, tratá-lo como não obrigatório, e permitir que uma norma jurídica o contrariasse, pois o tratado, realizador do princípio, estaria sendo revogado por uma lei que não o levaria em consideração.
Ora, mesmo que se entenda que os princípios contidos no artigo 4º da Constituição são normas programáticas, não se pode olvidar que, atualmente, está consolidado o entendimento de que as normas programáticas, no mínimo, possuem eficácia jurídica negativa, para impedir a integração no ordenamento de normas que as contrariem.
Aceitar o entendimento de que a promulgação de uma lei interna em sentido contrário ao tratado teria força para o revogá-lo seria aceitar uma norma que claramente estaria em sentido contrário ao princípio fundamental da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Ainda, como assinala Alberto Xavier: “Se o procedimento de celebração dos tratados pressupõe a intervenção conjunta de dois poderes – o executivo, a título de negociação e ratificação – e o legislativo, a título de referendo – não pode admitir-se que a revogação ou denúncia dos mesmos se processe sem a colaboração conjunta dos mesmos poderes que participaram de sua celebração”[4].
Não estamos afirmando que a celebração de um tratado levaria como que a uma paralisia no ordenamento jurídico nacional, impedindo que o tratado viesse a ser revogado, mesmo que interesses prementes e superiores levassem à conclusão dessa necessidade. Há o meio regular de revogação do tratado, a denúncia. Com ela, os demais países participantes tomam conhecimento que o país denunciante deixa de seguir as regras do tratados. Já sem ela, mesmo que tenha ocorrido internamente a promulgação de uma lei que pretenda revogar o tratado, para os outros países se dá uma verdadeira violação do quanto pactuado.
Defender que uma lei interna tem o condão de revogar um tratado mesmo sem a regular denúncia, gerando a situação de os outros países partes da convenção internacional acreditarem que no Brasil vigora regras jurídicas em consonância com o tratado assinado, o que não ocorre, é fazer pouco do princípio da cooperação entre os povos. A toda evidência, não se dá tal cooperação quando o Brasil se arroga o poder de assinar um tratado, declarando-se obrigado a ele, para em momento posterior, sem comunicar os demais participantes do acordo internacional, retirar do ordenamento jurídico as regras presentes do tratado. Uma cooperação requer, no mínimo, a obediência ao “pacta sunt servanda”: as normas as quais o Brasil se obrigou devem ser seguidas. É o que prescreve o artigo 27 da Convenção de Viena sobre os direitos dos tratados, atento aos princípios do “pacta sunt servanda” e da boa-fé na relação entre os Estados: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
Concordamos, desse modo, com a posição de Hamilton Dias de Souza, quando conclui:
“Do exposto, até o momento já se pode extrair uma primeira conclusão: os tratados internacionais sobre o comércio (como exemplificativamente o do GATT) representam atos concretos pelos quais se coloca em prática o princípio constitucional de que trata o art. 4º, inciso IX da Constituição. Desta forma, lei interna não poderá dispor de forma diversa daquela prevista no tratado, a menos que seja ele denunciado pelo Brasil, o que se permite em face da independência nacional, também garantida pelo inciso I do mesmo art. 4º.
É dizer que na hipótese de conflito normativo entre a lei interna e o tratado internacional, a prevalência será do último, por representar o instrumento de cooperação entre os povos a que se refere a Constituição, sob pena de violação ao princípio fundamental contido no inciso IX do art. 4º da Constituição Federal.”[5]
Não se diga que há, nesse entendimento, uma redução da soberania, fundamento da República contido no artigo 1º da Constituição. O País é soberano para auto-obrigar-se, assinando os tratados que o Presidente e o Congresso Nacional julgarem adequados, ou deixar de fazê-lo. No entanto, tendo assinado o tratado, passando a estar a ele obrigado, é juridicamente inadmissível entendê-lo não mais vigente caso não tenha ocorrido sua regular forma de revogação, consistente na denúncia. O Brasil é soberano, mas ao assinar tratados submete-se à regra segundo a qual a eles está obrigado enquanto não tomar as providências necessárias para sua revogação.
O princípio de não-disciminação em matéria de tributação internacional deve ser examinado nesse completo cenário, no qual os países são cada mais interdependentes, em que a própria Constituição Brasileira prescreve a inserção do País nas relações internacionais e no qual um tratado, que realiza o princípio da cooperação entre os povos, só pode ser revogado pelo meio próprio de revogação de um tratado e não por normas internas, ignorando os outros países participantes do acordo internacional, sob pena de não haver a obrigatória cooperação.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao tratar da posição jurídica dos tratados em face do direito interno, tem se manifestado pela possibilidade de lei ordinária revogar prescrição contida em tratado, uma vez que esse teria a mesma hierarquia daquela. Nesse sentido assinalou o Ministro Celso de Mello em seu voto, ao relatar a ADIN n ° 1.480-3/DF:
“Sabemos que os atos internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n. 80.004-SE (RTJ 83/609, Rel. p/o acórdão Min. Cunha Peixoto), quando se consagrou, entre nós, a tese – até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte – de que existe, entre tratados internacionais e leis brasileiras, mera relação de paridade normativa.
A normatividade emergente dos tratados internacionais, dentro do sistema jurídico brasileiro, por isso mesmo, permite situar esses atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as leis internas (…)” (destques do original)[6]
Observamos, porém, que o Supremo não analisou a questão sob a ótica desenvolvida neste estudo. Ele limitou-se a concluir que uma lei ordinária e um tratado aprovado para vigorar no ordenamento interno têm a mesma hierarquia. Não examinou a questão a partir da cooperação entre os povos e outros princípios pelos quais se deve guiar a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais e que levam a entender, a nosso ver, que tais princípios seriam contrariados ao se considerar que uma lei ordinária seria apta a revogar um dispositivo de tratado internacional. Essa discussão, portanto, continua em aberto em nossa opinião[7].
Tendo essas considerações em mente, sabe-se que diversos tratados envolvendo questões comerciais atualmente são discutidos e assinados tendo como principal escopo a busca de um tratamento equânime, não-disciminatório entre os nacionais e os produtos de um país e de outro, nas situações previstas. A intenção que move os países partes de tais tratados é, inicialmente, garantir a seus nacionais, em qualquer parte do mundo, uma situação equivalente aos dos nacionais do outro país, de modo a que eles possam competir em condições iguais. Com isso, produtos brasileiros podem ser localizados com maior facilidade em outros países e os estrangeiros ficam disponíveis no Brasil. Favorece-se, assim, a troca de informações e culturas diferentes espalham-se. Propicia-se a cooperação.
Para garantir o tratamento não discriminatório (entre outros requisitos), os tributos internos não podem onerar produtos importados de forma diversa que os produtos nacionais. Da mesma forma, existem regras que concedem aos países a possibilidade de se protegerem contra medidas adotadas por outros e que reduzem os preços de seus produtos exportados aquém dos custos de produção, gerando prejuízos ao país importador.
II – Indagações feitas
1) Fere o princípio da igualdade e os tratados internacionais a possibilidade de instituição de barreiras tarifárias ou compensatórias mediante a utilização de outras espécies tributárias (contribuições especiais) na importação de matérias-primas, produtos semi-elaborados e outros produtos destinados à circulação, mesmo em havendo a possibilidade de compensação do tributo nas etapas do ciclo mercantil?
A Organização Mundial do Comércio – OMC (que surgiu há cerca dez anos) estava prevista para ser criada desde o fim da II Guerra Mundial. Na época, foram criados a ONU, o FMI e o Banco Mundial. Quando se iniciou a discussão para aprovação da OMC (ou OIC), ela foi separada em duas áreas, que tiveram um ritmo diferente: a constituição do próprio organismo internacional e as negociações para redução de tarifas. Este tópico teve um desenvolvimento muito mais célere, nascendo, então o GATT[8], cujas regras foram recepcionadas pela OMC.
Vera Thorstensen aponta os princípios que pautaram o GATT e que continuam a vigorar na OMC:
“O sistema de regras construído no âmbito do GATT visa liberalizar as trocas entre as partes contratantes, através da prática de um comércio aberto a todos, e a partir de um conjunto de regras que estão fundamentadas em alguns princípios básicos.
O primeiro é que o único instrumento de proteção permitido dentro das atividades de trocas comerciais é o definido em termos de tarifas aduaneirase um dos objetivos do próprio Acordo Geral é de torná-las cada vez mais reduzidas. (…)
O segundo é que uma vez estabelecida uma nova tarifa ou benefício, estes passam a ser estendidos de forma não discriminatória, isto é, de igual modo para todas as partes contratantes.
O terceiro garante que uma vez dentro da fronteira de uma parte contratante, produtos importados não podem ser discriminados com relação aos produtos nacionais.”[9]
Como se vê, todos os princípios e normas que tratam do comércio internacional visam ao ideal único: propiciar que a concorrência internacional entre as empresas não seja influencida por nenhum fato externo, devendo existir as diferenças entre preços tão só em razão dos custos de produção de cada um dos competidores. Nessa medida, a discriminação em matéria tributária é algo que tende a ser eliminado pelas normas de comércio internacional.
Esses princípios estão dispostos em alguns artigos do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, o GATT, assinado já em 1947. Assim, o artigo II prevê limites à tributação nas importações entre os países membros:
“ARTIGO II
Lista de concessões
(a) Cada parte contratante concederá às outras partes contratantes, em matéria comercial, tratamento não menos favorável do que o previsto na parte apropriada da lista correspondente, anexa ao presente Acôrdo.
(b) Os produtos das partes contratantes, ao entrarem no território de outra parte contratante, ficarão isentos dos direitos aduaneiros ordinários que ultrapassarem os direitos fixados na Parte 1 da lista das concessões feitas por esta parte contratante, observados os têrmos, condições ou requisitos constantes da mesma lista. Êsses produtos também ficarão isentos dos direitos ou encargos de qualquer natureza, exigidos por ocasião da importação ou que com a mesma se relacionem, e que ultrapassem os direitos ou encargos em vigor na data do presente Acôrdo ou os que, como consequência direta e obrigatória da legislação vigente ao país importador, na referida data, tenham de ser aplicados ulteriormente.”
Todavia, de nada adiantaria a previsão de vedar a tributação por direitos aduaneiros acima de determinados níveis se fosse possível reservar aos produtos importados uma tributação mais gravosa por meio de tributos internos em comparação aos nacionais. Nessa situação, a discriminação contra os produtos importados e a proteção dos nacionais dar-se-ia em um momento posterior à entrada dos produtos no mercado e, pior, de uma maneira freqüentemente velada e sem um controle do grau de proteção concedido.
Para evitar essa situação, há os princípios também referidos por Vera Thorstensen de que o meio de proteção adequado dos mercados internos são os tributos aduaneiros e, uma vez que o produto importado se encontre dentro da fronteira do país importador, não deva haver discriminação em relação ao produto nacional. É o que prescreve o artigo III do Tratado GATT:
“ARTIGO III
Tratamento nacional em matéria de impostos e de regulamentação internos
1. Os produtos de qualquer Parte Contratante importados no território de outra Parte Contratante serão isentos da parte dos tributos e outras imposições internas de qualquer natureza que excedam aos aplicados, direta ou indiretamente, a produtos similares de origem nacional. Além disto, nos casos em que não houver no território importador produção substancial de produto similar de origem nacional, nenhuma Parte Contratante aplicará tributos internos novos ou mais elevados sobre os produtos de outras Partes Contratantes com o fim de conceder proteção à produção de produtos, diretamente competidores ou substitutos, não taxados de maneira semelhante; os tributos internos dessa natureza, existentes, serão de negociação para a sua redução ou eliminação.
2. Os produtos originários de qualquer Parte Contratante importados no território de qualquer outra Parte Contratante gozarão de tratamento não menos favorável que o concedido a produtos similares de origem nacional no que concerne a todas as leis, regulamentos e exigências que afetem a sua venda, colocação no mercado, compra, transporte, distribuição ou uso no mercado interno. As disposições dêste parágrafo não impedirão a aplicação das taxas diferenciais de transportes, baseadas exclusivamente na utilização econômica dos meios de transporte e não na origem de produtos.”
O MERCOSUL, nesta parte, não discrepa das determinações da OMC. O artigo 7º do Tratado de Assunção prevê:
“Artigo 7º
Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional.”
A lógica que seguem tais tratados é a de, no máximo, permitir que os estados-parte mantenham, na medida da permissão das normas, tributos sobre a importação, permitindo a proteção dos mercados internos no nível que se entenda necessário ou conveniente. Entretanto, tendo a mercadoria estrangeira ingressado no mercado interno, não será possível adotar um tratamento fiscal diferenciado, mais oneroso que o dispensado para o produto nacional. Assim, os tributos internos (não aqueles aplicáveis na importação) incidentes sobre a mercadoria estrangeira importada não poderão ser diversos dos aplicáveis sobre os produtos nacionais.
A questão posta – de extrema atualidade no Brasil – deve ser analisada a partir desses princípios que vigoram no mercado mundial, desde as previsões normativas do Tratado GATT de 1947 (no Brasil aprovadas com a Lei nº 313, de 30.07.1948).
Assim, a pergunta posta, parece-nos, pode ser respondida a partir de dois pontos diversos.
Caso se entenda que as espécies tributárias, como contribuições especiais, aventadas na questão – incidentes na importação e funcionando como barreiras tarifárias ou compensatórias –, tenham uma natureza de um direito aduaneiro[10], a resposta é dada pelo artigo II do Tratado GATT. Um país pode instituir direitos aduaneiros, mas até os limites acordados nas negociações mundiais quanto ao comércio[11]. Caso venha a exceder esse limite, estará contrariando os tratados sobre comércio mundial (GATT e OMC).
Cabe observar que a verificação desse excesso sobre o limite de tributação não deve ficar circunscrita apenas ao eventual tributo batizado de “imposto sobre a importação”, mas sim levando em consideração toda a cobrança realizada em razão, diretamente, da importação. Não fosse assim, não só haveria espaço para burlas aos tratados como eles correriam o risco de ficar inviabilizados, pois seria necessário prever os nomes dados por todos os países-parte dos tratados aos seus tributos aduaneiros. Portanto, se existir um tributo que tenha um outro nome qualquer – que não imposto sobre a importação –, mas que onere, incida sobre o fato da importação, também ele deverá ser computado para verificar se não ocorre um transpasse do limite acordado em tratado internacional.
Nessa situação, como o produto importado estará sendo mais tributado que o permitido, também ocorrerá um desacatamento ao princípio da isonomia. É certo que produtos importados e nacionais são diferentes, tanto que aqueles sofrem a imposição do tributo aduaneiro, o que já demonstra que eles possuem um tratamento jurídico diverso em determinadas condições. No entanto, essa diferença de tratamento deve se dar nas condições e limites previstos no ordenamento. Quando ela os excede, há uma violação à isonomia. Como em qualquer outra situação, o tratamento jurídico discrepante entre pessoas, objetos e situações diferentes justifica-se na medida dessa diferença e do que o ordenamento jurídico permite.
O fato de ser possível a compensação dessa contribuição especial nas etapas subseqüentes do ciclo mercantil, como aventado na questão posta, não parece afastar a mácula de injuridicidade de que padeceria esse ônus tributário na situação descrita. Inicialmente, porque a compensação pode se frustrar, por não ocorrer uma etapa subseqüente, seja em razão de o bem importado ser destinado ao ativo permanente ou ao consumo do importador, seja por ele ter se perdido devido a um sinistro, por exemplo. Em tais casos, a compensação ficará inviabilizada. E mesmo que um legislador previdente e perfeito consiga imaginar todas as mais variadas hipóteses em que a compensação poderá não ocorrer, criando remédios para tanto, ainda assim o produto importado estará tendo um tratamento jurídico diverso não amparado nas normas internacionais. Haverá, também, o ônus financeiro de desembolsar um valor pecuniário quando da importação que só será recuperado em momento posterior, quando da compensação.
A resposta, por conseqüência, não pode ser outra se não que um país-parte dos tratados GATT e OMC não pode utilizar-se de outras espécies tributárias, como contribuições especiais, para instituir barreiras tarifárias ou compensatórias ultrapassando o limite de tributação por direitos aduaneiros por ele assumido internacionalmente nesses tratados.
Outra perspectiva de análise se dá caso a contribuição especial ou outra espécie tributária qualquer, que estivesse onerando o produto importado, não se qualificasse como um direito aduaneiro, mas tivesse uma outra justificativa jurídico-econômica. Isso ocorre quando a cobrança do tributo sobre os produtos importados tem como objetivo fazer com que eles sejam tão onerados fiscalmente quanto os equivalentes nacionais.
Com efeito, o produto nacional, para ser produzido e conduzido para comercialização final, sofre incidência de diversos tributos internos. Já a mercadoria importada, por não ter sido produzida, nem ter passado por diversos elos de cadeia de comercialização no país de importação, não sofreu tais ônus. Assim, pode ocorrer que o produto importado venha a ter um preço inferior ao nacional não em razão de questões como produtividade ou custos inferiores no país de origem, mas sim por não sofrer a tributação interna do país importador a qual o equivalente nacional se submete.
Nem se diga que, se o produto importado não sofreu a tributação interna do país importador, ele foi onerado pelos tributos internos do país de origem, o que talvez não colocasse o nacional e o importado no mesmo nível em termos de custos tributários, mas ao menos reduziria a questão a um problema de maior ou menor custo tributário interno e eficiência fiscal entre os países. Ocorre que o ordenamento jurídico da maioria dos países prevê mecanismos de restituição dos tributos internos incidentes sobre os produtos quando eles são exportados. Dessa forma, aqueles destinados a outros países têm seus custos fiscais reduzidos e o país deixa de “exportar tributos”, como normalmente se fala. O custo do produto exportado passa a ser apenas aquele de produção, sem considerar os tributos internos incidentes.
Essa possibilidade está prevista no próprio tratado GATT, de 1947, no artigo VI, a propósito de direitos anti-dumping e de compensação:
“3. Nenhum produto originário de uma Parte Contratante e importado no território de outra Parte Contratante será submetido a direitos anti-dumping ou de compensação, por gozar de isenção ou de reembôlso dos direitos ou impostos que recaiam sôbre o produto similar quando destinado ao consumo do país de origem ou no país de exportação.”
Desse modo, se o produto estrangeiro, ao ser importado, não for submetido à mesma carga tributária a qual o produto nacional está submetido, haverá um tratamento discriminatório não contra o produto importado, mas sim a seu favor, em detrimento do nacional. Daí o tratado GATT, de 1947, também reconhecer o direito dos países-parte submeterem o produto importado aos mesmos tributos, na mesma carga, que oneram o equivalente nacional. É o que consta em dispositivo do artigo II, sobre lista de concessões:
“2. Nenhuma disposição do presente artigo impedirá que, (sic)uma parte contratante, a qualquer tempo, aplique no tocante à importação de qualquer produto:
(a) encargo equivalente a um imposto interno exigido, de conformidade com o disposto no parágrafo primeiro do art. III, sôbre um produto nacional similar ou uma mercadoria com a qual o produto importado tenha sido fabricado ou produzido no todo ou em parte; (…)”
O próprio tratado GATT, portanto, permite que, na importação, o produto estrangeiro seja submetido a uma tributação especial, a qual o produto nacional não está submetido, desde que ela se limite a submetê-lo a um encargo tributário equivalente ao que está submetido o produto nacional.
Nessa situação, acreditamos, longe de se estabelecer uma tributação violadora do princípio da isonomia e contrária aos tratados internacionais, é dado um tratamento que contribui para que a isonomia seja melhor implementada, com respaldo em tratado internacional sobre comércio mundial e tributação.
Inversamente, se a tributação especial a que estiver submetido o produto estrangeiro não se justificar como um instrumento para eqüalizá-lo com o produto nacional, parece-nos induvidoso que haverá uma agressão à isonomia, contrariando frontalmente o artigo III do tratado GATT, de 1947, antes transcrito (os produtos importados de país-parte do tratado serão isentos de tributos e outras imposições internas que excedam aos aplicados, direta ou indiretamente, a produtos similares de origem nacional).
Via de conseqüência, nessa perspectiva de análise, a conclusão do questionamento posto é que a instituição de outras espécies tributárias, como contribuições especiais, na importação de produtos, não fere o princípio da igualdade e os tratados internacionais apenas quando ela objetiva e se restringe a estabelecer um encargo equivalente aos tributos internos aos quais estão sujeitos os produtos nacionais. Caso o objetivo seja outro – ou mesmo seja esse, mas acabe por não se restringir a ele, estabelecendo um ônus superior –, a tributação imaginada violará a isonomia e tratados internacionais.
Cabe, neste ponto, por sua atualidade e pertinência, uma análise, embora rápida, da instituição no Brasil da COFINS-importação e do PIS/PASEP-importação, por meio da Medida Provisória n. 164/04.
Para situar a questão, cabe informar que a contribuição social para o financiamento da seguridade social – COFINS e a contribuição para os programas de integração social e de formação do patrimônio do servidor público – PIS/PASEP incidem, desde a Lei n. 9.718/98, sobre a totalidade de receitas obtidas pelas pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil[12]. Desde então a sistemática de tais tributos vem sendo criticada por especialistas e por empresários, mormente em razão da cumulatividade. Para corrigir esses defeitos, a Lei n. 10.637/02, em relação ao PIS/PASEP, e a Lei n. 10.833/03, em relação à COFINS, vieram instituir a tributação não-cumulativa para esses tributos. Para tanto, foram aumentadas as alíquotas apenas, segundo o Governo Federal, no percentual necessário para que não ocorresse perda de arrecadação.
Além disso, estabeleceram-se exceções ao regime de não-cumulatividade, com diversos tipos de contribuintes continuando sujeitos à cumulatividade, possuindo, então, uma alíquota inferior como compensação. É o caso de setores que estavam sujeitos a sistemáticas especiais de tributação, por exemplo, o de substituição tributária, em que um contribuinte integrante da cadeia de produção ou comercialização de uma mercadoria recolhe o tributo devido por outro contribuinte, também participante dessa cadeia. Estão igualmente sujeitos à cumulatividade aqueles contribuintes sujeitos à sistemática de tributação monofásica, em que os tributos devidos por toda a cadeia de comercialização ou produção de uma mercadoria eram recolhidos por um só contribuinte. Ao mesmo tempo, o legislador decidiu excluir do regime de não-cumulatividade outros tipos de contribuintes, como aqueles que recolhem o imposto sobre a renda pela sistemática de lucro presumido (pequenas e médias empresas).
Estabelecida a não-cumulatividade para a COFINS e o PIS/PASEP, o Presidente da República decidiu emitir a Medida Provisória n. 164/04 (que, no momento em que este artigo é escrito, ainda aguarda aprovação do Congresso Nacional, o qual poderá rejeitá-la ou alterar seus dispositivos), instituindo a COFINS-importação e o PIS/PASEP-importação. O objetivo foi de submeter os produtos importados à mesma carga tributária que onera os nacionais, como explica a Exposição de Motivos da mencionada Medida Provisória:
“2. As contribuições sociais ora instituídas dão tratamento isonômico entre a tributação dos bens produzidos e serviços prestados no País, que sofrem a incidência da Contribuição para o PIS-PASEP e da Contribuição para o Financiamento Seguridade Social (COFINS), e os bens e serviços importados de residentes ou domiciliados no exterior, que passam a ser tributados às mesmas alíquotas dessas contribuições.”
A COFINS-importação e o PIS/PASEP-importação incidem sobre a entrada de bens estrangeiros no território nacional e o pagamento, crédito, entrega, emprego ou remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação por serviço prestado. O contribuinte é o importador, sendo que as alíquotas são as mesmas da COFINS e da contribuição para o PIS/PASEP internas, vigentes no sistema de não-cumulatividade e a incidência dessas contribuições sobre a importação gera um direito de crédito ao contribuinte sujeito à não-cumulatividade, que ele poderá descontar na determinação do valor devido pela COFINS e pelo PIS/PASEP internos.
Inicialmente, poder-se-ia dizer, então, que realmente as contribuições sobre a importação da Medida Provisória n. 164/04 objetivariam implementar de um modo mais adequado a isonomia, anulando do produto importado uma vantagem que ele possui, de não sofrer os ônus de dois relevantes tributos nacionais (COFINS e PIS/PASEP). Tal tributação, em lugar de violar a isonomia, ajudaria a implementá-la de modo mais eficaz, agindo dentro do tratado GATT, de 1947.
Todavia, a Medida Provisória n. 164/04 trouxe para a COFINS-importação e para o PIS/PASEP-importação defeitos de que padeciam a COFINS e o PIS/PASEP internos. Realmente, aqueles contribuintes que estão sujeitos à tributação cumulativa desses tributos internos não terão direito de crédito ao sofrerem a incidência das duas novas contribuições por terem realizado uma importação. A despeito disso, estarão recolhendo a COFINS-importação e o PIS/PASEP-importação com as mesmas alíquotas dos contribuintes que possuem direito a crédito. O objetivo desse tratamento diverso também seria, estranhamente, a isonomia, como procura explicar a Exposição de Motivos da Medida Provisória[13].
Ocorre, porém, que é altamente duvidoso que essa disparidade de tratamento entre os contribuintes nacionais – alguns têm direito de crédito e outros não – contribua com a isonomia. Aparentemente, o que ela faz é contrariá-la, gerando aumentos de tributação bastante elevados em diversos setores e possivelmente dispensando ao produto importado um tratamento tributário mais oneroso que aquele ao qual está submetido o equivalente nacional. Isso contraria o tratado GATT de 1947, como antes visto.
A par disso, a tributação diferenciada entre contribuintes contraria a Constituição Federal de 1988. Ela não se limita apenas a conceder competência ao legislador para tributar a totalidade das receitas e as importações, também estabelece que a tributação poderá se dar de forma diferente em função de certas características dos contribuintes, previstas expressamente. Esta a redação dos §§ 9º e 12 do artigo 195 da Constituição, após o “caput” discriminar a competência da União Federal para instituir contribuições sociais:
“§ 9º As contribuições sociais previtas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra.
(…)
§ A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas.”
Logo, se a própria Constituição já estabelece que as contribuições sociais poderão onerar os contribuintes de forma diferente e prevê os critérios para essa diversidade de tratamento jurídico-tributário – atividade econômica e utilização intensiva de mão-de-obra –, não pode o legislador infraconstitucional decidir-se por estabelecer diferenciações em função de um outro critério que não aquele expressamente já determinado pelo Constituinte. Em suma, pode sim ocorrer uma tributação diferenciada entre os contribuintes, mas em função dos critérios eleitos no texto constitucional e não em função de outros.
Ocorre que, entre outros critérios utilizados pelo legislador infraconstitucional está, por exemplo, o de que contribuintes que utilizam o regime de lucro presumido para apurar o imposto sobre a renda estarão submetidos à cumulatividade, não podendo creditar-se da COFINS-importação e do PIS/PASEP-importação. Este é um exemplo de critério – utilizar ou não uma forma de apurar o IR –, para estabelecer uma diferenciação na tributação das contribuições, que não está consagrado na Constituição. A Medida Provisória n. 164/04 – além de uma redação confusa, propiciando insegurança jurídica com suas diferentes interpretações – incorre, assim, em agressão contra a Carta Magna, sendo, em nossa opinião, inconstitucional[14].
Por fim, cabe observar que a diversidade de tratamentos criada para a COFINS e o PIS/PASEP internos e mantida nas contribuições sobre a importação tem suscitado grandes discussões no Brasil e gerado insatisfação com um sistema complexo e, por isso, custoso, que acaba por aumentar a tributação além do escopo proclamado de promover uma isonomia entre os produtos nacionais e importados. Como a Medida Provisória n. 164/04 está em discussão no Congresso Nacional, é bem possível que ela venha a sofrer modificações. Há esperança que os problemas aqui apontados venham a encontrar uma solução, não mais existindo quando da realização do VI Colóquio.
2) Os subsídios ou taxas compensatórias incidentes sobre produtos importados, existentes na legislação dos países sul-americanos e semelhantes aos “countervailing duties” dos Estados Unidos, tem natureza tributária? Ferem disposições e princípios do regime jurídico internacional do livre comércio?
2.a)
Convém resssaltar a importância de se identificar a natureza jurídica do objeto de estudo. A partir daí torna-se possível identificar no ordenamento jurídico o conjunto de princípios e normas peculiares de um ramo do direito aplicáveis a esse objeto. Assim, caso se conclua que as medidas compensatórias possuem natureza tributária, a elas são aplicáveis os princípios constitucionais tributários (como a estrita legalidade, a anterioridade, a vinculação administrativa), que devem ser observados na elaboração e nterpretação das normas fiscais. A determinação da natureza jurídica do objeto estudado é, portanto, de grande importância.
A questão também se põe porque, antigamente, a Resolução CPA n° 1.227/87 estabelecia, em seu artigo 1°, que: “(o) s direitos Antidumping e compensatórios definitivos, de que tratam os Acordos Antidumping, e de subsídios e Direitos Compensatórios, constituem Imposto sobre a Importação Adicional”. Deve ser verificado se tal norma administrativa estaria adequada às regras superiores, como os tratados que prevêem tais medidas.
De modo bem geral, os “countervailing duties” são considerados direitos compensatórios estabelecidos por um país para compensar subsídios à exportação concedidos por outro país.
O Acordo sobre Subsídio e Medidas Compensatórias (ASMC), aprovado internacionalmente no âmbito da OMC pela rodada do Uruguai e, no Brasil, com o Decreto nº 1.355/94, define os subsídios como:
“1 – Para os fins deste Acordo, considerar-se-á a ocorrência de subsídio quando:
a.1) haja contribuição financeira por um governo ou órgão público no interior do território de um Membro (denominado, a partir daqui, ‘governo’), isto é:
i) quando a prática do governo implique transferência direta de fundos (por exemplo, doações empréstimos e aportes de capital), potenciais transferências diretas de fundos ou obrigações (por exemplo, garantias de empréstimos);
ii) quando receitas públicas devidas são perdoadas ou deixam de ser recolhidas (por exemplo, incentivos fiscais tais como bonificações fiscais) ([15]);
iii) quando o governo forneça bens ou serviços além daqueles destinados à infra-estrutura em geral, ou quando adquire bens;
iv) quando o governo faça pagamentos a um sistema de fundo, ou confie ou instrua órgão privado a realizar uma ou mais das funções descritas nos incisos ‘i’ a ‘iii’ acima, as quais seriam normalmente incumbência do governo e cuja prática não difira, de nenhum modo significativo, da prática habitualmente seguida pelos governos; ou
a.2) haja qualquer forma de receita ou sustentação de preços no sentido do Artigo XVI do GATT 1994; e
b) com isso se confirma uma vantagem.
2 – Um subsídio, tal como definido no parágrafo 1, apenas estará sujeito às disposições da Parte II ou às disposições das Partes III ou V se o mesmo for específico, de acordo com as disposições do Artigo 2”.
Assim, os subsídios são benefícios econômicos concedidos por um governo a empresas de seu país, o que propicia uma diminuição nos preços de venda das mercadorias produzidas em comparação com mercadorias semelhantes de outros países e, mesmo, com os custos de produção no próprio país de origem. Tal diminuição no valor de venda é obtida de forma artificial, especificamente em razão da ação ou omissão das autoridades estatais.
Como uma reação/defesa a tais benefícios, há a autorização do uso de direitos compensatórios. Sua definição, segundo o ASMC, é de que seria: “o direito especial percebido com o fim de contrabalançar qualquer subsídio concedido direta ou indiretamente à fabricação, à produção ou à exportação de mercadoria”.
Segundo entendemos, várias são razões que permitem concluir, a partir de tal definição, que os direitos compensatórios não possuem a natureza de tributo.
De início, cumpre esclarecer que a possibilidade de instituição de qualquer tributo está ligada à prática de um ato pelo contribuinte, ou a uma situação de fato em que ele se encontra, ou a uma atuação estatal relacionada a esse contribuinte (como a prestação de serviço público ao contribuinte, ou a prática de serviço de polícia sobre esse contribuinte, ou um outro ato estatal qualquer que gerou um particular benefício ao contribuinte). De qualquer maneira, o motivo pelo qual há a obrigação fiscal liga-se com o contribuinte: o tributo é devido em razão de ato ou situação dele ou de ato do Estado referida a ele. Em outras palavras, a hipótese de incidência do tributo necessariamente envolve o contribuinte.
Com as medidas compensatórias se dá algo diverso. O importador é obrigado a recolher o valor a elas correspondente não só porque a importação é realizada, mas porque ocorreu um subsídio, porque o Estado de origem do bem concedeu benefícios para que o preço final do produto fosse inferior ao seu custo de produção. A hipótese de incidência, assim, não se restringe a um ato da pessoa obrigada ao recolhimento, consistente em realizar uma importação. Para que possa existir validamente a obrigação de recolhimento de uma medida compensatória deve ocorrer ainda o fato de ter sido concedido um subsídio que traga prejuízos ao Estado importador.
Bem se vê, portanto, que não se tem em vista a pessoa que realiza a importação, mas sim o bem importado, visa-se a eliminação da diminuição artificial do preço de venda do produto, a recomposição da parcela de preço que deveria estar agregada ao produto e que não o foi em razão da atuação ou omissão do Estado de origem. Portanto, as medidas compensatórias são aplicadas sobre aqueles que estão submetidos ao ordenamento jurídico do país importador, mas com o objetivo de atingir o país e as pessoas localizadas no local onde se teve a prática do subsídio.
Nessas condições, não se pode falar em tributo, a menos que passasse a existir, no sistema jurídico brasileiro, uma outra modalidade de tributo, em que a hipótese de incidência da norma tributária não guardasse correlação com o contribuinte. Como não existe tal espécie tributária, não se pode falar em tributo[16].
A peculiaridade dos direitos compensatórios e suas diferenças com os tributos não se encerra aí. Segundo estabelece o artigo 1° da Lei n° 9.019/95, os direitos compensatórios serão aplicados mediante a cobrança de importância, em reais, que corresponderá a um percentual aplicável sobre o valor da importação, suficiente para sanar o dano ou ameaça de dano à indústria doméstica. Eles serão apurados em processo administrativo, nos termos da legislação específica. Atualmente, a proposta para aplicação de medidas compensatórias deve ser dirigida a SECEX (Decreto n° 3.981/2001) que decidirá sobre a viabilidade de abertura de processo de investigação, conduzirá o procedimento caso a investigação seja aberta e irá determinar o montante e o tempo durante o qual se dará a aplicação da medida compensatória.
Percebe-se, então, que foi fixada uma sensível discricionaridade nas diversas etapas para verificação de ocorrência de subsídio e aplicação de medida compensatória. Inversamente, a exigência de tributos se dá de forma vinculada, de tal maneira que, se a Administração verificar a ocorrência de ato ou fato previstos na norma de incidência como gravada pelo tributo, deverá, obrigatoriamente, vir a exigir o cumprimento da obrigação tributária (CTN, artigos 3° e 142).
Nesse sentido, assinalam Tércio Sampaio Ferraz Jr., José Del Chiaro Ferreira da Rosa e Mauro Grinberg, ao tratarem do tema: “É esta exatamente a terminologia utilizada pelo item segundo do artigo VI do GATT, que estabelece que o Governo pode estabelecer direitos anti-dumping; pode, portanto, não há atividade plenamente vinculada, não se aplicando o art. 3° do CTN – que, como visto acima, contém o conceito de tributo – aos direitos ant-dumping e compensatórios”[17].
A partir de uma análise comparativa das normas que disciplinam a exigência de tributos e a aplicação de medidas compensatórias, de rigor é a conclusão no sentido de que também neste aspecto ambas as figuras não se confundem. De fato, enquanto a obrigação tributária decorre de lei e sua exigência é obrigatória e vinculada para a administração, as medidas compensatórias são impostas diretamente pelas autoridades administrativas de forma discricionária, caso elas concluam que a situação apresentada possua as características de prática de subsídios.
Além disso, a imposição de direitos compensatórios pode cessar simplesmente em razão da mudança de prática do país de origem dos produtos. Assim, são situações que levam à finalização da aplicação das medidas em análise: (i) caso o país de origem suspenda a prática dos subsídios; (ii) se os exportadores aumentarem os preços a ponto de eliminarem o subsídio; ou, ainda, (iii) na hipótese de um acordo com as autoridades administrativas brasileiras. Ora, tais hipóteses de eliminação dos direitos compensatórios em nada se confundem com a possibilidade dos Estados de aprovarem ou revogarem leis que instituam ou dispensem a cobrança de tributos[18].
Portanto, diante de tais verificações, entendemos que as medidas compensatórias não possuem natureza tributária, não se lhes aplicando o regime jurídico tributário.
Demonstrada a impossibilidade de classificar as medidas compensatórias como tributos, necessário se faz buscar qual a natureza jurídica da figura em exame.
Poder-se-ia cogitar de argumentar que seriam multas, verdadeiras penalidades a serem impostas aos praticantes de subsídios. Ou seja, seriam sanções aplicáveis aos que cometessem um ilícito – no caso, a prática de subsídios[19].
Contudo, não nos parece possível assim se entender. Em primeiro lugar, porque os subsídios não podem ser classificados com atos ilícitos, havendo até casos em que é legítima sua adoção, nos termos do ASMC.
Além disso, como vimos, a implementação de medidas compensatórias se dá de forma discricionária pela administração, que as aplica se julgá-las oportunas e no nível que considerar mais adequado. Tal característica é incompatível com a imposição de penalidade. Essa não só é atividade decorrente de lei, mas também aplicável de forma vinculada e obrigatória, não se podendo se admitir de que a verificação de um ilícito corresponda à aplicação de uma sanção facultativa. Esse ponto afasta, decisivamente, a natureza de sanção.
Por fim, caso se concluísse tratar-se de penalidade, então caberia verificar quem seriam os praticantes do ato ilícito e, conseqüentemente, os sujeitos penalizados. A rigor, deveria ser o praticante dos subsídios. Todavia, como as medidas compensatórias constituem-se em um sobre-valor aplicável às mercadorias subsidiadas importadas, quem as paga são os importadores. Aquele penalizado diretamente não seria o praticante da ilicitude. Estar-se-ia, na verdade, impondo uma sanção em razão de alguém efetivar uma importação, o que não constitui infração alguma.
Além dessas duas possibilidades, há quem sustente que as medidas compensatórias não se enquadrariam em nenhum regime jurídico já existente. Sendo assim, teriam natureza jurídica própria, ou seja, seriam figuras “sui generis”. Entretanto, não nos parece ser essa a conclusão mais acertada.
De acordo com a sua finalidade, forma como foram instituídas e sobre que relações afetam, entendemos que as medidas compensatórias são imposições do Estado dentro da atividade econômica, com amparo em normas de direito econômico internacional, pelas quais se pretende eliminar o menor preço de determinado produto em razão dele ter se beneficiado de vantagens competitivas concedidas no país de origem e que, por isso, não existem nos similares produzidos em outras regiões. É uma forma de autuação do Estado na esfera econômica. Nessa medida, aplica-se o regime jurídico e princípios contidos no ordenamento a respeito do direito econômico.
Assim, a Administração, ao aplicar medidas compensatórias, adota, na definição de Eros Grau[20], norma condicional, determinando a forma, medida e hipóteses de como se dá a aplicação de um sobre-valor sobre a importação de determinados produtos.
Como afirmam Tércio Sampaio Ferraz Jr., José Del Chiaro Ferreira da Rosa e Mauro Grinberg as medidas compensatórias “constituem conteúdo de normas de direito econômico internacional, que impõe ao produto exportado/importado condições de acesso ao mercado do país importador, que podem ser o pagamento dos direitos ou a assunção de obrigações por parte dos exportadores de eliminação do dumping ou do subsídio, tudo isso de modo que a comercialização seja condizente com o interesse global da economia”[21].
Portanto, somos da opinião de que as medidas compensatórias são normas de direito econômico.
2.b)
Quanto à segunda parte da questão, cumpre analisarmos se a aplicação de tais medidas feriria disposições e princípios do regime jurídico internacional do livre comércio.
Como visto, as medidas compensatórias visam eliminar vantagens de preços que produtos importados gozam em razão de benefício artificial concedido pelo Estado de origem da mercadoria. Essa a razão do instituto. Com isso, a finalidade buscada pela norma é colocar nas mesmas condições de mercado o produto importado (sobre o qual foi aplicada a medida compensatória) e o produto nacional. Nesse cenário, a diferença de preço de ambos os produtos dar-se-ia exclusivamente em razão dos custos de produção e da qualidade do produto oferecido.
Parece-nos claro, então, que, como a medida compensatória propicia uma concorrência leal, que busca purificar os preços das mercadorias de interferências benéficas de outros estados, ela estimula o livre comércio internacional.
Seguindo esse raciocínio, respondemos diretamente à questão afirmando que, se as medidas compensatórias forem aplicadas da forma como acima descrita – ou seja, atendendo à sua real função –, não ferirão disposições e princípios do regime jurídico internacional do livre comércio. Estarão, na verdade, propiciando um ambiente de livre concorrência internacional.
Diferente é a conclusão, segundo entendemos, se a medida compensatória, a despeito de qual seja a fundamentação para sua aplicação, acabar por aumentar de forma arbitrária o valor do produto importado. Realmente, nessa hipótese haverá uma discriminação indevida, podendo chegar até a algo como a imposição de uma verdadeira barreira para a entrada de tal mercadoria no estado praticante da medida compensatória.
Ocorrerá, então, um desvio de finalidade (de função ou de poder). Nos termos da lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Ocorre desvio de poder, e, portanto, invalidade, quando o agente se serve de um ato para satisfazer finalidade alheia à natureza do ato utilizado”[22]. Com efeito, a medida compensatória, que se presta a evitar que os produtos nacionais de um país sejam prejudicados com subsídios concedidos por outro país, passaria a propiciar uma vantagem aos produtos nacionais. Esses, em lugar de ser prejudicados, seriam beneficiados. Haveria, aí, agressão contra a livre concorrência que a medida compensatória visa proteger.
Conclui-se, portanto, que, verificando-se que a aplicação da medida compensatória venha a gerar efeito de suplantar o valor do subsídio, trazendo benefícios para o produto nacional, em lugar de simplesmente protegê-lo, serão feridos os princípios do livre comércio internacional, já que ela impedirá o acesso dos produtos importados ao mercado do estado que impõe a medida.
3) O direito de livre trânsito, assegurado no art. 5°, XV da Constituição Brasileira, permite que, na saída e entrada de bens e de capitais no país, se adote regime semelhante ao que vigora quanto ao trânsito de bens e capitais dentro do território nacional? Pode a lei restringir o princípio constitucional, ou deve, apenas, regulamentar os procedimentos para tal circulação?
Trata o dispositivo citado do direito de locomoção ou do direito de liberdade à locomoção. A norma possui a seguinte redação:
(…)
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;”
A norma em questão representa uma das dimensões do direito de liberdade do homem. A partir dessa garantia, não podem os indivíduos ser impedidos, arbitrariamente, de se locomoverem no território ou enviar seus bens de um ponto para outro. Por meio dele fica assegurado o direito de ir, vir ou permanecer, sem que o Estado possa anular tal garantia. Trata-se, por essa razão, de garantia primordial dos indivíduos.
Ao comentar o mandamento em questão, assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho que: “A liberdade de locomoção é ‘jus manendi, abulandi, eundi ultro citroque’, ou seja, a liberdade de ficar, ir e vir. Esta é a manifestação mais visível da liberdade pessoal, por isso muitas vezes a liberdade pessoal é identificada com a liberdade de locomoção, com a liberdade física de seguir para onde se quiser ir, ou de permanecer onde se quiser ficar”[23].
Em razão de tal importância, não se pode admitir uma interpretação restritiva do direito de locomoção. Deve ser prestigiada interpretação que garanta o direito de locomoção na maior extensão possível. Seguindo esse raciocínio, entendemos que tal dispositivo é aplicável com a mesma extensão aos estrangeiros, mesmo que não residentes.
Poder-se-ia, por uma interpretação literal do artigo 5°, “caput”, da Constituição, afirmar que as garantias ali prescritas (dentre elas o direito de locomoção) não se aplicariam aos estrangeiros que não fossem residentes. Nessa medida, se, por exemplo, um estrangeiro não residente viesse a permanecer por certo período de tempo no Brasil (a turismo) ou, se nem mesmo fisicamente adentrasse no País, mas detivesse bens que aqui estão (ativos no mercado financeiro ou imóvel), não teria garantido o direito de livre locomoção, como acima comentado.
Todavia, não nos parece ser essa a melhor interpretação. Somos da opinião de que todos aqueles que estiverem de alguma forma relacionados com o ordenamento jurídico nacional possuem os direitos garantidos no rol do artigo 5° da Carta Magna, incluindo, entre eles, os estrangeiros não residentes. E assim pensamos, em razão do artigo 5° pretender estabelecer direitos e garantias fundamentais, aplicáveis, em um primeiro momento, indistintamente a todas as pessoas naturais. Tanto que muitos dos direitos expressos em tal dispositivo originaram-se da Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão. Segundo ensina o professor Celso Bastos:
“A despeito da fórmula ampla que adotou, ainda assim cremos que ela não pode ser entendida na sua literalidade, sob pena de ficarmos em muitas hipóteses aquém do que pretendeu o constituinte. Senão vejamos: se por acaso um estrangeiro em trânsito pelo País, portanto não-residente, fosse tolhido em sua liberdade de locomoção, chegar-se-ia ao ponto de denegar-lhe habeas corpus, sob o fundamento de que carece de residência no Brasil para dele se beneficiar? Por acaso, ainda recusar-se-ia a devida proteção à propriedade de um estrangeiro que porventura nem residisse no País? Seria esta uma razão para poder confiscar-lhe a propriedade sem indenização? A nós sempre pareceu que o verdadeiro sentido da expressão ‘brasileiros e estrangeiros residentes no País’ é deixar certo que esta proteção dada aos direitos individuais é inerente à ordem jurídica.
Em outras palavras, é um rol de direitos que consagra a limitação da atuação estatal em face de todos aqueles que entrem em contato com esta mesma ordem jurídica. Já se foi o tempo em que o direito para os nacionais era um e para os estrangeiros era outro, mesmo em matéria civil.
Portanto, a proteção que é dada à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade é extensiva a todos aqueles que estejam sujeitos à ordem jurídica brasileira. É impensável que uma pessoa possa ser ferida em um destes bens jurídicos tutelados sem que as leis brasileiras lhe dêem a devida proteção. Aliás, curiosamente, a cláusula sob comento vem embutida no próprio artigo que assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”[24].
Em resumo, somos da opinião de que o direito de locomoção das pessoas e de seus bens é garantido aos nacionais e estrangeiros, sejam residentes ou não residentes, pessoas físicas ou jurídicas. Para tanto, basta estarem, de qualquer maneira, ligados ao ordenamento pátrio.
Se a liberdade de locomoção é princípio aplicável a todos, isso não significa, porém, que limitações não podem ser impostas por lei, conforme, inclusive, determina o dispositivo. A questão que se coloca, então, é em que medida devem ser inseridas as limitações ao referido direito de locomoção.
Em nossa opinião, tais restrições, assim como as limitações ao trânsito interno só se justificam para garantir outros direitos e para assegurar o bem da coletividade e enquanto limitam-se a atender a esses objetivos. Assim, o direito é garantido constitucionalmente, mas pode ser restringido pelo legislador infraconstitucional. Vê-se, assim, que se trata de mandamento constitucional de eficácia contida.
Conforme comenta Pinto Ferreira, ao tratar do direito de locomoção: “Os preceitos constitucionais devem ser observados e respeitados, tendo destarte tal norma uma eficácia contida (restringida)”[25]. Segundo Alexandre de Moraes: “Trata-se, porém, de norma constitucional de eficácia contida, cuja lei ordinária pode delimitar a amplitude, por meio de requisitos de forma e fundo, nunca, obviamente, de previsões arbitrárias. Assim, poderá o legislador ordinário estabelecer restrições referentes ao ingresso, saída, circulação interna de pessoas e patrimônio”[26].
Ou seja, a prescrição nuclear é de que a liberdade de circulação deve ser preservada sempre que possível, porém, limitações podem ser impostas. Sendo assim, a movimentação de pessoas, bens e capital dentro do País não é de liberdade absoluta. É lícito que os entes federativos estabeleçam leis no sentido de garantir que o transporte de pessoas e bens ocorra de forma segura, estabelecendo restrições diversas dependendo do que será transportado e do meio utilizado na locomoção.
A verificação da adequação jurídica das restrições ao direito de locação deve ser feita atentando-se aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Eles devem ser observadas pelos poderes legislativo e administrativo de tal forma a garantir o direito de liberdade à locomoção da forma mais ampla possível, restringindo-se somente na exata medida necessária para que seja garantido o acesso de todos a esse direito e para que sejam observados os demais princípios constitucionais (como, por exemplo, a soberania e a segurança nacional) e o bem da coletividade
Nesse sentido, tratando da regulamentação e restrição ao direito de locomoção, assinala Alexandre de Moraes: “(…) O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou ordem públicas, a moral, ou a saúde pública, ou os direitos de liberdade das demais pessoas”[27].
Se não é possível uma restrição à liberdade de locomoção, inclusive com bens, além do estritamente necessário para garantir outros direitos de igual magnitude, também não se pode permitir a existência de tributos em montante tal que venha a ter o efeito de anular tal liberdade. É possível, assim, a tributação (p. ex., o imposto sobre a importação incide na entrada de bens no território nacional), mas não para usá-la para atingir uma finalidade vedada pelo ordenamento: o menosprezo ao direito de locomoção de pessoas e bens. Concordamos, portanto, com a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Por outro lado, a entrada da pessoa, segundo o texto acima, importa na entrada de bens que a ele pertençam. Isto não significa que tais bens ingressem no território nacional com imunidade tributária. Não mencionada no texto essa imunidade, é de se reconhecer que a entrada dos referidos dos bens não exclui eventual tributação, desde que a lei assim preveja. É óbvio que essa tributação, porém, não pode ser tão pesada que signifique, de fato, a extinção do direito de ingressar no território nacional com os próprios bens. Seria inconstitucional a lei que taxasse tão pesadamente o ingresso desses bens que praticamente o impedisse. Hoje, ademais, vigora o art. 150, IV, que proíbe a utilização de ‘tributo com efeito de confisco’ (v. adiante)”[28].
A Constituição, inclusive, é expressa nesse sentido, como lembra o Professor, no artigo 150, inciso IV, no que se refere à circulação de pessoas e bens dentro do território nacional[29]. Essa regra fiscal reforça o direito à livre circulação de bens e pessoas, complementando-o[30]. Com isso, a Constituição Federal reforça o direito de liberdade da pessoa ou de seus bens serem transportados livremente dentro do território nacional.
Por todas essas razões, nossa opinião é no sentido de não ser admissível a adoção de medidas que não tenham como objetivo garantir o exercício do direito de livre locomoção ou a observância de outros princípios constitucionais. Tais restrições, a serem impostas por lei, devem obedecer aos ditames da proporcionalidade e da razoabilidade. Assim, é legítimo, por exemplo, exigir a identificação correta daqueles que pretendem entrar no País, restringir ou até proibir a entrada de pessoas no País com fundados motivos para acreditar que elas podem causar distúrbios à sociedade, vedar a entrada de bens e produtos que podem ser prejudiciais ou perigosos às pessoas[31].
Nesse sentido é a opinião de Celso Bastos, comentando o artigo 5°, XV, da Constituição do Brasil, ao afirmar que: “Razões de ordem econômica podem também justificar a imposição de condições tais como a de possuir capital próprio ou contrato de trabalho no País. Embora seja notório que o mundo caminhe para uma internacionalização crescente, não há dúvida também que as comunidades políticas se organizam tendo em vista o bem comum de seus nacionais”[32].
Da mesma forma, entendemos que, dependendo das condições de fato existentes, pode se apresentar como constitucional uma eventual medida restritiva da circulação de bens e capitais, tanto para ingressar no território nacional quanto para dele sair. Assim, pode-se imaginar a ocorrência de uma situação econômica de enorme dificuldade, a justificar uma medida restritiva nesse sentido, que seja adotada pelo Brasil durante esse período.
Todavia, como dito, tratar-se-ia de uma medida apenas restritiva, que não poderia chegar a ponto de anular o direito à liberdade de locomoção e, por isso, deveria ser temporária, existente enquanto persistirem as condições de fato adversas que a justificam. Só assim restarão obedecidos os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. De acordo com a jurisprudência tranqüila do Supremo Tribunal Federal, calcada na doutrina alemã, a razoabilidade e a propocionalidade devem ser sempre aferidas de acordo com as condições de fato existentes. Nenhuma medida restritiva de direitos é razoável ou proporcional por si só, mas apenas enquanto se justifique devido às condições de fato.
Por tais motivos e apenas a título de exemplo, uma medida restritiva que determinasse que capitais estrangeiros ingressados no Brasil devem permanecer aqui por um intervalo mínimo de tempo – digamos, três meses – pode ser juridicamente razoável em função das condições de fato existentes e, por isso, constitucional.
Deve-se sempre estar atento, porém, que o excesso da medida em relação à situação concreta pode encobrir a prática de um desvio de poder: a utilização de um ato para fins diversos daqueles que o justificam. A inconstitucioalidade, então, estará presente.
Em conclusão, entendemos que a entrada e a saída de bens no Brasil são reguladas de forma semelhante ao trânsito de bens e capitais no território nacional, podendo a lei restringi-las somente a fim de preservar o acesso de todos de forma ampla à liberdade de locomoção, em respeito aos demais princípios indicados na Constituição da República e visando alcançar o bem da coletividade, sempre obedecendo aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, atento às condições de fato existentes.
In: VI COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITO TRIBUTÁRIO. Buenos Aires – Argentina. 20-21 de agosto de 2004. Buenos Aires: Editorial La Ley – IOB, págs. 413-437
[1]Mestre e doutorando em Direito do Estado (Direito Tributário) pela PUC/SP. Advogado em São Paulo.
[2]Mestrando na área de Direito do Estado (Direito Constitucional) pela PUC/SP. Advogado em São Paulo.
[3]Consta do preâmbulo do Acordo Constitutivo da OMC, entre seus objetivos:
“As Partes do presente Acordo,
Reconhecendo que as suas relações na esfera da atividade comercial e econômica devem objetivar a elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e um volume considerável e em constante elevação de receitas e demanda efetiva, o aumento da produção e do comércio de bens e de serviços, permitindo ao mesmo tempo a utilização ótima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentável e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios de fazê-lo, de maneira compatível com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes níveis de desenvolvimento econômico.” (Anexo ao Dec. 1.355/94).
[4]In “Direito Tributário internacional do Brasil”, 6ª ed., Forense, 2004, p. 130. No mesmo sentido são as lições de Celso D. Albuquerque de Mello in “Curso de direito internacional público”, Vol. I, 13ª ed. Renovar, 2001, p. 123..
[5]“Limites de alteração tarifária frente ao Mercosul e ao GATT (OMC)”, in Repertório IOB de Jurisprudência n° 06/96, p. 142.
[6]No mesmo sentido a posição externada noRHC n° 80.035-1-SC, rel. Min. Celso de Mello, julgado em 21.11.2000.
[7]Quanto aos tratados em matéria tributária, contrariamente, vem se reconhecendo a supremacia da norma internacional, em detrimento da lei interna, tendo em vista o disposto no artigo 98 do CTN. Se, no passado, integrantes do STF chegaram a referir-se a esse dispositivo como de constitucionalidade duvidosa (Min. Cunha Peixoto, voto proferido no RE nº 80.004-SE), em ocasiões mais recentes, todavia, o STF manifestou entendimento claro no sentido de sua validade e eficácia. Assim foi, por exemplo, no julgamento do RE 90.824, em decisão unânime, proferida pelo Plenário, quando o Min. Moreira Alves, como relator, assim votou: “De feito, em matéria tributária, independentemente da natureza do tratado internacional, se observa o princípio contido no artigo 98 do Código Tributário Nacional: (…) Impõe-se, portanto, a meu ver a conclusão de que o sistema do preço de referência, que é um gravame à importação para os fins do Tratado de Montevidéu, não pode ser aplicado, por força desse Tratado, que tem de ser respeitado pela legislação fiscal brasileira a ele posterior, às importações originárias de países pertencentes a ALALC.”. Da mesma maneira, o STJ tem repetidamente assinalado: “(…) Há que ser observado o comando do art. 98 CTN, que não admite a revogação de tratado pela legislação tributária antecedente ou superveniente (…)” (RESP nº 104.5666/SP, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, unânime, DJ 07.06.1999).
[8]Para detalhes desse desenvolvimento histórico, vide Luiz Olavo Batista, “A OMC – Organização Mundial do Comércio e suas repercussões sobre o ordenamento jurídico interno”, transcrição de palestra realizada na FIESP/CIESP.
[9] “OMC – Organização Mundial do Comércio: as regras do comércio internacional e a rodada do milênio”, Aduaneiras, 1999, p. 32.
[10]Direitos aduaneiros são, de modo geral, os tributos incidentes especificamente sobre o fato da importação, como explica José Lence Carluci:
“Este tributo – imposto aduaneiro –é também conhecido como direitos aduaneiros, direitos de importação, direitos de importação para consumo, impostos de aduana, impostos alfandegários, Imposto de Importação e gravames a importação. Na expressão direitos de importação para consumo, o parágrafo único do artigo 1º do Decreto-Lei n. 300/88 fazia compreender apenas o Imposto de Importação. Idêntica denominação era consagrada no artigo 420 da Nova Consolidação das Leis das Alfândegas e Mesas de Rendas.
Sob a denominação de impostos aduaneiros estão abrangidos todos os gravames exigidos na entrada ou saída de mercadorias através das fronteiras aduaneiras, tais como o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação. Via de regra, somente os impostos aduaneiros que gravam a importação são considerados impostos aduaneiros tradicionais, visto que os demais podem ter vigências esporádicas, ao sabor das flutuações políticas e econômicas. É assim, em quase todos os países. Portanto, não estão compreendidos no conceitos de impostos aduaneiros, as taxas ou tarifas relacionadas com as operações de carga, descarga ou armazenagem de mercadorias, as quotas de contribuição ou de encargos de natureza cambial, na exportação, o ICMS incidente sobre as mercadorias importadas e o IPI vinculado à importação.” (“Uma introdução ao direito aduaneiro”, Aduaneiras, 1997, p. 43).
[11]Deve ser observado que, de 1947 (data da criação do GATT) para cá, ocorreram outras negociações que progressivamente foram diminuindo o peso desses direitos aduaneiros, com os países participantes reduzindo cada vez mais os tributos incidentes na importação. Vera Thorstensen nos dá conta desse desenvolvimento:
“O sistema de regras do comércio internacional, como é hoje concebido, foi estabelecido ao longo dos anos, através de oito rodadas de negociações multilaterais.
As seis primeiras visaram basicamente a diminuição dos direitos aduaneiros, através de negociações de concessões tarifárias recíprocas. As duas últimas rodadas foram mais amplas, mas também incluíram reduções tarifárias. O sucesso dessas rodadas pode ser atestado quando se tem em conta que, em 1947, a média das tarifas aplicadas para bens era de 40% e, que, em 1994, com a Rodada Uruguai, essa média caiu para 5%.” (ob. cit., p. 30).
[12]Excluímos, aqui, as dúvidas quanto à constitucionalidade dessa Lei, até hoje ainda não resolvidas pelo Supremo Tribunal Federal, e peculiaridades específicas da Lei, não pertinentes para o exame do caso.
[13]“3. Considerando a existência de modalidades distintas de incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS – cumulativa e não-cumulativa – no mercado interno, nos casos dos bens ou serviços importados para revenda ou para serem empregados na produção de outros bens ou na prestação de serviços, será possibilitado, também, o desconto de créditos pelas empresas sujeitas à incidência não-cumulativa do PIS/PASEP e da COFINS, nos casos que especifica.
4. A proposta, portanto, conduz a um tratamento tributário isonômico entre os bens e serviços produzidos internamente e os importados: tributação às mesmas alíquotas e possibilidade de desconto de crédito para as empresas sujeitas à incidência não-cumulativa. As hipóteses de vedação de créditos vigentes para o mercado interno foram estendidas para os bens e serviços importados sujeitos às contribuições instituídas por esta Medida Provisória.”
[14]A MP 164/04 ainda padece, a nosso ver, de outras inconstitucionalidades, mas que não estão diretamente vinculadas ao tema em análise.
[15]No entanto, conforme antes visto: “De acordo com as disposições do Artigo XVI do GATT 1994 (nota do XVI) e de acordo com os anexos I a III deste Acordo, não serão consideradas como subsídios as isenções, em favor de produtos destinados à exportação, de impostos ou taxas habitualmente aplicados sobre o produto similar quando destinado ao consumo interno, nem a remissão de tais impostos ou taxas em valor que não exceda os totais devidos ou abonados”
[16]Justamente por não ser um tributo é que o § 1° do artigo 1° da Lei nº 9.019/95 prevê: “Os direitos antidumping e os direitos compensatórios serão cobrados independentemente de quaisquer obrigações de natureza tributária relativas à importação dos produtos afetados”.
[17]“Direitos Anti-‘Dumping’ e compensatórios: sua natureza jurídica e conseqüências de tal caracterização”, in Revista de Direito Mercantil n° 96, p. 93.
[18]Ademais, os direitos compensatórios são medidas de caráter temporário, aplicáveis somente enquanto durar e se verificar os subsídios (apesar de que em um caso extremo em que um País mantenha a concessão de subsídio em caráter definitivo, pode-se imaginar a imposição de medidas compensatórias também duradoura). Já os tributos, independente de quais sejam, estão sempre presentes no ordenamento de um Estado.
[19]Nesse sentido as lições de Aquiles Augusto Varanda in “GATT: Código Anti-dumping”. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 142.
[20]In“A ordem econômica na Constituição de 1988” , RT, 1990, p. 281
[21]Obra cit., p. 95.
[22]“Curso de direito administrativo”, 5ª ed., Malheiros, 1994, p. 186.
[23]In“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol..1, Saraiva, 1990, p. 39 e 40.
[24]In“Comentários a Constituição Brasil”, vol. 2., Saraiva, 1988, p. 4. Do mesmo sentir é Alexandre de Moraes: “Observe, porém, que a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro (RTJ 3/566), não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações, como o mandado de segurança e demais remédios constitucionais” (in“Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional”, 2ª ed., Atlas, 2002, p. 172). Em sentido contrário, confira-se a posição de José Afonso da Silva,in “Curso de direito constitucional positivo”, 16ª ed., Malheiros, 1999, p. 197.
[25]In“Comentários à Constituição Brasileira”, 1° vol., Saraiva, 1989, p.90.
[26]Inobra cit., p. 255.
[27]Obra cit., p. 256.
[28]Obra cit., p. 40.
[29]“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito federal e aos Municípios:
(…)
V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.”
[30]Cfr. José Afonso da Silva, in obra cit. p. 692. Luciano Amaro, apoiando-se em assertivas de Ricardo Lobo Torres afirma: “O que a Constituição veda é o tributo que onereo tráfego interestadual ou intermunicipal de pessoas ou de bens; o gravame tributário seria uma forma de limitaresse tráfego. Em última análise, o que está em causa é a liberdade de locomoção(pessoas ou bens), mais do que a não discriminação de bens ou pessoas, a pretexto de irem para outra localidade ou de lá virem; ademais, prestigia-se a liberdade de comércioe o princípio federativo” (in “Direito tributário brasileiro”, 6ª ed. Saraiva, 2001, p. 141 – destaques do original).
[31]José Cretella Jr. trata de uma série de limitações gerais, da seguinte forma: “Complementando a Constituição, a lei ordinária pode estabelecer os requisitos para o exercício da liberdade de circulação, tais como passaportes, vistos de entradas, medidas sanitárias, proteção à moeda e câmbio, revista de bagagem nas aduanas” (In “Comentários à Constituição de 1988”, vol. 1, Forense Universitária, p. 286).
[32]Obra cit., p. 89