A aprovação da reforma tributária sobre o consumo (EC 132/2023) apresenta
desafios relacionados à criação e regulamentação do Comitê Gestor do Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS), sua uniformização com a Contribuição sobre Bens e
Serviços (CBS) e aderência das novas regras à cláusula federativa (art. 60, § 4º, I da
CF).
Quanto às relações horizontais entre entes subnacionais, imagine-se situação em
que um fiscal do município de Fortaleza/CE, outro do estado de São Paulo e outro do
município de São Paulo/SP se defrontem com uma mesma realidade fática A: a
contratação, por empresa de São Paulo/SP, de serviço consumido em parte no
município de SP e em parte no município de Fortaleza/CE, onde estabelecido o
prestador.
Suponha-se que o fiscal de Fortaleza entenda que esse fato A, à luz da norma “y” do
IBS, não gera consequências tributárias, o do estado de São Paulo entenda que o
mesmo fato A, à luz da mesma norma “y”, implica alguma consequência e o fiscal do
município de São Paulo compreenda que o fato A atrai a aplicação da norma “x”, não
a “y”, com consequências jurídicas distintas.
Tratando-se da mesma realidade A, como o tributo poderia funcionar sem que
houvesse um órgão central que harmonizasse a fiscalização e interpretação de suas
regras?
Para tentar prevenir esse tipo de situação, o inciso IV do art. 156-A estabeleceu que
o IBS “terá legislação única e uniforme em todo o território nacional”, ressalvada,
apenas, a fixação de alíquota própria por lei específica de cada ente federativo.
O art. 156-B, por sua vez, assentou que as “competências administrativas” serão
exercidas de forma integrada pelos estados, Distrito Federal e municípios
exclusivamente por meio do Comitê Gestor. Este deverá “I – editar regulamento único
e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto” e “III – decidir o
contencioso administrativo”.
O inciso V do mesmo dispositivo assentou, ainda, que as atividades de “fiscalização,
o lançamento, a cobrança e a representação administrativa ou judicial do imposto
serão realizadas pelas administrações tributárias e procuradorias dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios, que poderão definir hipóteses de delegação ou de
compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação
dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os referidos entes
federativos”.
Como se vê, o texto veda a possibilidade de cada ente federativo ter seu próprio
regulamento do IBS e atribui exclusivamente ao Comitê Gestor a função de
uniformizar a interpretação e a aplicação das normas entre os entes subnacionais,
inclusive mediante decisão aparentemente final no contencioso administrativo.
Não se descarta, porém, a hipótese de múltiplas fiscalizações, especialmente quando
houver interesse comum de mais de um ente federativo. No exemplo acima, o fato
gerador poderia ser considerado ocorrido em São Paulo, em Fortaleza ou em ambos
parcialmente. Assim, tanto os fiscais dos municípios de São Paulo e de Fortaleza,
quanto os do estado de São Paulo e do Ceará estariam, em tese, habilitados a
fiscalizar a operação e, eventualmente, interpretá-la de forma diversa.
Logo, é imprescindível que a lei complementar estabeleça a forma como tal
uniformização deverá ocorrer na prática, por intermédio do Comitê Gestor, para evitar
a situação retratada no exemplo acima. A depender do que for, ou não, previsto,
poderá haver disputas federativas ou indeterminações normativas, com reflexos
sobre a segurança que, de acordo com Gustav Radbruch[1], é um dos componentes
universais do Direito ao lado da Justiça.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 5835, declarou a
inconstitucionalidade das leis complementares 157/2016 e 175/2020, atinentes aos
ISS, por falta de densidade normativa das leis quanto à definição do tomador do
serviço em cada caso, definição do domicílio a ser considerado (civil, fiscal ou
declarado), hipóteses de modificação de domicílio no mesmo exercício financeiro,
dentre outras.
De acordo com o tribunal, “evidencia-se a necessidade de uma normatização que
seja capaz de gerar segurança jurídica e não o contrário, sob pena de retrocesso em
tema tão sensível ao pacto federativo. Além da proteção à segurança jurídica, há a
necessidade de proteção da estabilidade entre os entes federados, sob pena de
serem criados conflitos em matéria tributária. Somete diante de uma definição clara e
exauriente de todos os aspectos da hipótese de incidência é possível ter
previsibilidade e impedir tais conflitos de competência em matéria tributária” (p. 31,
voto Min. Alexandre de Moraes, ADI 5835, DJe 27/07/2023).
O precedente serve de alerta para o legislador da reforma, em função das dezenas
de questões que, sob pena de inoperância do sistema, deverão ser reguladas[2] e da
previsão de incidência do imposto no destino, a exigir definição clara dos aspectos
fundamentais da relação jurídico-tributária.
Em nossa próxima reflexão, abordaremos os desafios que dizem com as relações
verticais entre a União e os entes subnacionais e seus possíveis reflexos sobre o
pacto federativo.
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