Veículo: JOTA
Autor(es): Hugo Funaro , Cesar Augusto Seijas de Andrade
Tribunal mantém entendimento contrário ao STJ sobre a cobrança do ICMS no transporte de mercadorias exportadas
Dando continuidade ao projeto “Observatório de Jurisprudência do TIT/SP”, a segunda fase do estudo tem como foco o monitoramento dos acórdãos proferidos pela Câmara Superior do TIT em período subsequente àquele abrangido pela fase inicial do estudo.
Consideramos nesse artigo os acórdãos publicados de 27.05.2019 a 08.06.2019.
Nesse período, foram publicados 26 acórdãos proferidos pela Câmara Superior do TIT/SP, dos quais:
Do julgamento sobre a incidência de ICMS nas prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal de mercadorias destinadas ao exterior – AIIM n. 4023502-6
Neste artigo, escolhemos examinar o acórdão proferido pela Câmara Superior do TIT no julgamento do AIIM n. 4023502-6, a fim de verificar a adequação desse julgado com a jurisprudência do STJ e do TJ/SP sobre o tema.
O contribuinte interpôs recurso especial para reformar o acórdão da Câmara baixa do TIT/SP que manteve a exigência fiscal, fundamentada em não recolhimento do ICMS sobre prestações que se sujeitariam à incidência do imposto segundo o entendimento do Fisco Estadual. No caso concreto, o contribuinte transportou as mercadorias do Município de Luiz Antonio/SP até o Município de Santos/SP. Posteriormente, as mercadorias foram remetidas para outro país (i.e., foram exportadas).
Vale lembrar que esta discussão foi objeto de análise durante a 1ª fase do Projeto no grupo de pesquisa que tratou de “Operações de exportação e as remessas intermediárias com fim específico de exportação”. Naquela oportunidade foram analisados 53 acórdãos proferidos em sede de recursos ordinário e especial no período de agosto de 2009 a maio de 2017. De acordo com as conclusões obtidas naquela fase:
No precedente ora analisado, o contribuinte sustentou nas razões recursais que o transporte de mercadorias destinadas à exportação é imune e isento do ICMS (art. 3º, II, da LC 87/1996). Além disso, alegou-se que o imposto não incidiria no transporte intermunicipal de mercadorias quando se inicia e termina dentro do mesmo Estado, nos termos do Convênio ICMS n. 04/04.
O recurso especial não foi conhecido quanto à aplicação do Convênio ICMS n. 04/04 ao caso, por ausência de prequestionamento, tendo em vista que tal matéria não foi analisada pelo acórdão recorrido. Quanto ao restante, o recurso foi conhecido, porém, foi-lhe negado provimento por maioria (10×6). A ementa do julgado é a seguinte:
“ICMS 1 e 2. FALTA DE PAGAMENTO. LANÇAMENTO A MENOR NO LIVRO REGISTRO DE SAÍDAS DE ICMS DESTACADO EM CTRCS. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. EXPORTAÇÃO. Matéria já foi amplamente apreciada por esta Corte, prevalecendo o entendimento pela incidência do ICMS no serviço de transporte intermunicipal e interestadual de mercadorias, ainda que as mercadorias transportadas se destinem para o exterior. RECURSO ESPECIAL DO CONTRIBUINTE. PARCIALMENTE CONHECIDO. NEGADO PROVIMENTO”.
Segundo o relator, Juiz João Maluf Junior, prevalece na Câmara Superior do TIT/SP o entendimento de que “a não incidência prevista na Lei Complementar 87/96 estabelece apenas que o imposto não incide sobre prestações que destinem serviços ao exterior e não sobre prestação de serviço de transporte que destine mercadoria para o exterior, na esteira das decisões proferidas nos processos DRT-09-313795/10 e DRT-11-102992/07. Ao final, o relator menciona que esse entendimento está amparado, também, na Resposta à Consulta n. 20/20051 e que a jurisprudência do STF se firmou no sentido de que a imunidade prevista no art. 155, §2º, X, “a”, da CF não compreende o serviço de transporte de mercadorias destinadas à exportação.
No voto vista, o Juiz Eduardo Soares de Melo asseverou que deve ser aplicada, ao caso, a isenção prevista no art. 3º, II, da LC 87/1996, conforme a jurisprudência do STJ sobre a matéria. Esse entendimento, contudo, restou vencido.
A leitura da decisão em comento, assim como dos precedentes por ela referidos, indica que a Câmara Superior não desconhece a posição do STJ, porém, vem optando por seguir a orientação do STF sobre a matéria, como se ambas fossem antagônicas.
Entretanto, as decisões das Cortes Superiores se baseiam em normas desonerativas distintas e complementares (imunidade e isenção), não existindo discrepância entre elas que justifique a “preferência” pela orientação do STF, em detrimento da do STJ.
Com efeito, o art. 155, §2º, X, “a”, da CF prevê que o ICMS não incidirá sobre as operações que destinem mercadorias para o exterior e os serviços prestados a destinatários no exterior. Entretanto, a norma constitucional referida não esgota o trato da desoneração do ICMS nas exportações, pois o art. 155, §2º, XII, “e”, da CF outorga competência específica à lei complementar para “excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos expressamente mencionados no inciso X, a”.
No exercício dessa competência, a LC 87/1996 exclui do ICMS as “operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias (…) ou serviços” (art. 3º, II).
Assim, no tocante aos serviços sujeitos ao ICMS, enquanto a CF imuniza aqueles “prestados a destinatários no exterior”, a LC 87/96 isenta “as prestações que destinem ao exterior mercadorias”. Ou seja, a desoneração do ICMS alcança não só os serviços exportados (por força da imunidade do art. 155, §2º, X, “a”, da CF), mas também aqueles cujo custo se agrega ao preço das mercadorias exportadas, encarecendo-as, como se dá com o transporte nacional (por força da isenção do art. 155, §2º, XII, “e”, da CF c/c art. 3º, II, da LC 87/1996). O objetivo das normas exonerativas é eliminar o “custo Brasil”, de modo a garantir a competitividade dos produtos nacionais no mercado externo, seguindo o princípio pelo qual “não se exportam tributos”.
É evidente, portanto, que o alcance da desoneração do ICMS em relação aos serviços relacionados à atividade de exportação não se resolve apenas com base na imunidade do art. 155, §2º, X, “a”, da CF, sendo necessário verificar, também, o alcance da isenção veiculada em lei complementar editada com fundamento na competência exonerativa heterônoma prevista no art. 155, §2º, X, “e”, da CF.
Tanto é assim que, a despeito de o STF ter interpretado o art. 155, §2º, X, “a”, da CF no sentido de que a imunidade constitucional não abrange os serviços utilizados no transporte de mercadorias com destino ao exterior (RE n. 196.527/MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª Turma, DJ 13/08/1999, dentre outros), aquela Corte igualmente reconhece que “deixou expresso a C.F., art. 155, § 2º, XII, e, que as prestações de serviços poderão ser excluídas, nas exportações para o exterior, mediante lei complementar (RE n. 212.637/MG, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ 17/09/1999). Por isso, não se insere na competência jurisdicional do STF analisar o trato dado à matéria pela lei complementar (ARE n. 770.516 AgR/SC, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 09/06/2016; ARE 1.094.125 AgR/RN, Rel. Min. GIlmar Mendes2 – Dje: 29/11/2018).
Diante disso, assume especial relevância a orientação fixada pela 1ª Seção do STJ há mais de 10 anos e que continua sendo observada pelas suas duas turmas de direito público3, no sentido de que “o art. 3º, II da LC 87/96 dispôs que não incide ICMS sobre operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, de modo que está acobertado pela isenção tributária o transporte interestadual dessas mercadorias” (EREsp n. 710.260/RO, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 14/04/2008).
Afinal, compete ao STJ dar a última palavra sobre a interpretação do art. 3º da Lei Complementar nº 87/1996, de sorte que o afastamento da isenção do ICMS reconhecida ao transporte interno de mercadorias exportadas, com apoio no entendimento do STF acerca da imunidade do art. 155, §2º, X, a, da CF, implica não só confusão entre os conceitos tributários de imunidade e isenção, como declaração implícita de inconstitucionalidade da referida norma legal (tal como interpretada pelo órgão judicial competente), o que é vedado ao TIT (art. 28 da Lei nº 13.457/2009)4.
CONCLUSÃO
Do exposto, verifica-se que a Câmara Superior do TIT vem mantendo posição firme quanto à incidência do ICMS sobre o serviço de transporte interno de mercadorias destinadas à exportação, realizado em período anterior à edição do Decreto n.º 56.335/2010.
Entretanto, tal orientação está em desacordo com a pacífica jurisprudência do STJ quanto à aplicação, ao caso, da isenção prevista no art. 3º, II, da LC 87/96, que complementa a imunidade do art. 155, §2º, X, “a”, da CF, como reconhece o STF.
Nesse contexto, seria de todo recomendável que, em cumprimento aos deveres da Administração Fazendária estabelecidos no art. 8º da LC 939/20035, a matéria fosse reexaminada pela Câmara Superior do TIT em outra oportunidade, de modo a uniformizar a aplicação do direito federal inclusive no âmbito administrativo e evitar litígios desnecessários que só geram custos e insegurança jurídica.
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1 Confira-se o entendimento fazendário: “5. Este órgão consultivo, analisando questionamento semelhante, explicitou o entendimento de que, no caso, deve ser observado que se tratam de dois fatos geradores distintos: a operação de saída da mercadoria com destino ao exterior, não-sujeita ao ICMS;
a prestação de serviço de transporte dessa mercadoria do local do estabelecimento exportador até o local de embarque ou até a empresa comercial exportadora, situados em território nacional. 6. Note-se que quando o trajeto envolver mais de um Município, configura-se uma prestação de serviço de transporte intermunicipal ou interestadual, já que essa prestação autônoma não está destinando mercadorias diretamente ao exterior e seus efeitos exaurem-se dentro do territorial nacional. 7. Portanto, na prestação de serviço de transporte intermunicipal ou interestadual de mercadorias destinadas à exportação ou à empresa comercial exportadora incidirá o ICMS nos termos do inciso II do artigo 2º da Lei Complementar 87/96 (artigo 1º, inciso II, do RICMS/2000)” (destaques do original).
2 Confira-se, a propósito, o seguinte trecho do voto condutor do Ministro Gilmar Mendes: “Inicialmente, verifico que o agravante insiste na confusão que faz entre isenção e imunidade tributária, porquanto o Tribunal de origem não afastou a incidência do ICMS sobre o serviço de transporte interestadual e intermunicipal de produtos industrializados destinados ao exterior com fundamento na imunidade tributária prevista no artigo 155, § 2º, X, a, da Constituição Federal, mas sob o fundamento de que as operações objeto desta ação estavam acobertadas pela isenção conferida pela Lei Complementar 87/1996, além da repetição, no mesmo sentido, da Lei Estadual 6.968/93”.
3 Vide, e.g., 1ª Turma: AgInt no ARESp n. 455.010/MS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20/05/2019; 2ª Turma: REsp n. 1.793.173/RO, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 22/04/2019. O Tribunal de Justiça de São Paulo guarda precedentes no mesmo sentido:
“APELAÇÃO CÍVEL – ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL – ICMS – Serviços de transporte intermunicipal de mercadorias destinadas à exportação – Lei Complementar nº 87/96 que expressamente isenta do ICMS as operações e prestações que destinem mercadorias ao exterior – AIIM que deve ser anulado – Entendimento pacificado pelo C. STJ em sede de Embargos de Divergência (EREsp 710260) – Precedentes deste Tribunal – Sentença reformada – Recurso da autora provido – Reexame necessário prejudicado” (Processo n. 1053608-38.2017.8.26.0053, Rel. Des. Maria Laura Tavares, 5ª Câmara de Direito Público, p. 08/02/2019).
“RECURSO VOLUNTÁRIO DA FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO – REEXAME NECESSÁRIO – Embargos à execução fiscal – ICMS – Pretensão da desconstituição dos créditos tributários insertos na CDA n.º 1.178.387.369, que instrui a execução fiscal objeto dos embargos [Processo 0000948-39.2015.8.26.0511], decorrente do AIIM n.º 3.111.201-8 – Lançamento de crédito tributário decorrente [de] transporte intermunicipal de mercadorias destinadas ao exterior no território paulista – Sentença de procedência – Inconformismo da FESP. Imunidade constitucional (art. 155, X, “a”, da CF) e isenção (LC nº 87/96, art. 3º, II). Operações de transporte intermunicipal de mercadorias destinadas à exportação que são isentas de ICMS – Exegese do art. 3º, II, da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) – A finalidade da exoneração tributária é tornar o produto brasileiro mais competitivo no mercado internacional. Precedentes deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo e do E. STJ – Sentença que julgou procedentes os embargos à execução, para desconstituir o crédito tributário exigido pela Fazenda do Estado de São Paulo na CDA n.º 1.178.387.369, decorrente do AIIM n.º 3.111.201-8, determinando em consequência a extinção da respectiva Execução Fiscal, mantida – Recurso voluntário da FESP, improvido – Reexame necessário, improvido” (Processo n. 0001113-86.2015.8.26.0511, Rel. Des. Marcelo L. Theodósio, 11ª Câmara de Direito Público, p. 23/05/2018).
4 “Artigo 28 – No julgamento é vedado afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a inconstitucionalidade tenha sido proclamada: I – em ação direta de inconstitucionalidade; II – por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em via incidental, desde que o Senado Federal tenha suspendido a execução do ato normativo; III – em enunciado de Súmula Vinculante.” Neste dispositivo compreende-se a declaração implícita de inconstitucionalidade, por aplicação analógica da Súmula Vinculante n. 10 do STF: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.”
5 “Artigo 8º – A Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”
HUGO FUNARO – Advogado, mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Sócio do Dias de Souza Advogados Associados.
CÉSAR AUGUSTO SEIJAS DE ANDRADE – Doutorando e Mestre em Direito Económico, Financeiro e Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado em Dias de Souza Advogados Associados.