Veículo: Conjur
Autor(es): Dr. Luís Henrique da Costa Pires
Foi recentemente publicado (em 20/5/2021) o acórdão proferido pelo Plenário do STF no RE 1.187.264, que tratou da questão relativa à exclusão do ICMS da base de cálculo da CPRB — Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta. Na ocasião, vencidos os ministros Marco Aurélio (relator original), Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber, a Corte decidiu pela legitimidade da exigência da contribuição em questão com a inclusão do ICMS na base de cálculo.
Por ocasião do julgamento, feito em 24/2/2001, o resultado inicialmente causou certa perplexidade. Afinal, a própria Corte havia fixado entendimento, no conhecido RE 574.706, no sentido de que o ICMS não pode ser incluído nas bases do PIS/Cofins — tributos que, tal qual a CPRB, igualmente adotam a receita como base de cálculo — tendo recentemente ratificado que o ICMS a excluir é o destacado, afastando com isso qualquer discussão a esse respeito. O Superior Tribunal de Justiça, de seu turno, também havia decidido em regime repetitivo pela exclusão do ICMS da base de cálculo da CPRB, justamente por entender aplicável o mesmo raciocínio adotado no RE 574.706 [1].
Uma possível — mas que desde já se adianta inaplicável — decorrência do julgado atinente à CPRB poderia ser no sentido de que o ICMS poderia ser igualmente computado na base de cálculo de outros tributos calculados sobre a receita bruta, como sucede com o Funrural devido pelas agroindústrias e regulado pelo artigo 22-A da Lei 8.212/91, na redação conferida pela Lei 10.256/01.
Uma leitura atenta do acórdão do RE 1.187.264, no entanto, conduz a entendimento distinto.
De fato, o exame da questão passa pela aplicação da teoria de precedentes, que foi recebida e aprofundada pela atual legislação processual civil. Concluído o julgamento sob o regime repetitivo, compete ao intérprete extrair do acórdão a sua efetiva razão (ou razões) de decidir. A ratio decidendi, na terminologia mais atualizada.
Ainda que o entendimento do Supremo Tribunal Federal venha cada vez mais se inclinando por rejeitar a transcendência dos motivos determinantes [2] — que, grosso modo, implica tornar vinculantes as razões de decidir de determinada questão jurídica —, o fato é que, vinculante ou não, a ratio da decisão servirá de elemento essencial e decisivo na resolução de litígio cujo substrato fático-jurídico seja idêntico ou ao menos semelhante. É a partir da identificação da ratio que será viável apurar a existência ou não do distinguishing (terminologia também atualmente utilizada) em determinado litígio.
Em outras palavras, a identificação dos fundamentos determinantes permitirá identificar o grau de aproximação entre o precedente já julgado e a questão que esteja para ser decidida.
Dentre os vários critérios propostos pela doutrina para identificação da ratio e, consequentemente, que permite apurar se há ou não distinguishing com relação a tema semelhante, tem destaque aquele que propõe uma inversão de interpretação, sugerido por José Rogério Cruz e Tucci [3]. Recomenda o citado autor a inversão do “teor do núcleo decisório” e indaga “se a conclusão permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; caso contrário, a resposta será positiva”.
No caso, a razão (ratio) principal e decisiva pela qual a Suprema Corte, no RE 1.187.264 relativo à CPRB, não aplicou o entendimento adotado no RE 574.706 pertinente ao PIS/Cofins, é claramente perceptível na leitura dos votos que foram declarados: sendo facultativa a adoção da CPRB, “não poderia a empresa aderir ao novo regime de contribuição por livre vontade e, ao mesmo tempo, querer se beneficiar de regras que não lhe sejam aplicáveis” (trecho do voto do ministro Alexandre de Moraes).
Foi aduzido, ainda, dever-se “compreender que cabe a cada contribuinte verificar se recolher a CPRB, tal como prevista pelo legislador, com a inclusão do ICMS em sua base de cálculo, é, em poucas palavras, melhor ou pior do que recolher a contribuição sobre a folha, nos moldes do regime comum” (trecho do voto do ministro Dias Toffoli), reportando-se o voto, nesse ponto, a acórdão de relatoria do ministro Gilmar Mendes em outro caso sobre o mesmo tema (RE 954.262 AgR), no qual pontuou que “não pode o contribuinte optar por regime tributário mais favorecido e ao mesmo tempo combiná-lo com características mais benéficas do regime geral de tributação”.
Portanto, parece claro que o elemento decisivo que levou a Suprema Corte a adotar o entendimento de que o ICMS poderia ser computado na base de cálculo da CPRB está no fato de que a adoção da receita bruta como base de cálculo, ao invés do regime normal de tributação sobre a folha de salários, é uma faculdade colocada à disposição do contribuinte. Sendo uma faculdade, uma vez exercida a opção não poderia o contribuinte insurgir-se contra qualquer aspecto.
Trata-se de entendimento, inclusive, em conformidade com a posição do Poder Judiciário em outros temas que envolvem faculdades e/ou opções exercidas pelo contribuinte.
É o que já decidiu o Supremo, por exemplo, com relação ao regime do Simples [4] e tem o Superior Tribunal de Justiça decidido com relação à inclusão ou não do ICMS nas bases de cálculo do IRPJ/CSL dos contribuintes sujeitos ao regime do lucro presumido (que também adota a receita como base), a partir do que se firmou o entendimento de que “não é possível para a empresa alegar em juízo que é optante pelo lucro presumido para em seguida exigir as benesses a que teria direito no regime de lucro real, mesclando regimes de apuração” [5].
Portanto, em matéria de regimes fiscais facultativos o entendimento predominante é na linha de que, ao aderir, o contribuinte sujeita-se ao pacote completo, sem possibilidade de escolher a parte boa e impugnar o que considera parte ruim (salvo, evidentemente, com relação a condições ou requisitos que se mostrem nitidamente ilegais ou contrários ao texto constitucional, como sucede, exemplificativamente, com as cláusulas de “confissão irretratável” da dívida tão comuns nos parcelamentos em geral [6]).
Levando-se tudo isso em conta, com relação ao Funrural devido pelas agroindústrias (salvo as que se dedicam às atividades indicadas no § 4º do artigo 22A [7]) tem-se que o regime diferenciado de tributação — receita ao invés da folha de salários — é obrigatório. Não há opção ao contribuinte. Trata-se de imposição. Logo, o distinguishing com relação ao RE 1.187.264 relativo à CPRB parece evidente porque, neste, a facultatividade foi elemento decisivo para afastar-se o entendimento adotado no RE 574.706, que sedimentou a posição de que o ICMS, por não constituir receita do contribuinte, não pode compor a base de cálculo de tributos que adotam como critério material justamente o auferimento de receita, como é o caso do PIS e da Cofins.
Adotado o critério da inversão antes referido, a conclusão inclina-se no sentido de que o resultado adotado pelo STF poderia ter sido outro, isto é, no sentido da exclusão do ICMS da base da CPRB, relativamente ao período em que o elemento facultatividade não esteve presente. Esse aspecto, essencial à resolução do litígio, foi, inclusive, suscitado nos dois embargos de declaração opostos em face do acórdão, de modo que mesmo a questão relativa à exclusão do ICMS da base da CPRB ainda aguarda definição final, ao menos no que respeita ao período em que a exigência era obrigatória.
Em conclusão, não há razão para não acreditar que, com relação ao Funrural das agroindústrias, aplicar-se-á o mesmo entendimento adotado com relação ao PIS/Cofins no que respeita à necessária exclusão do ICMS de sua base de cálculo.
[1] RESP nº 1.624.297, ministro Regina Helena Costa, DJe 10/04/2019.
[2] Dentre outros, Rcl 43736 AGR, ministro Dias Toffoli, DJe 20/05/2021; Rcl 38925 AgR,ministro Celso de Mello, DJe 11/11/2020; e Rcl 36983 AgR, ministro Edson Fachinº
[3] Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo, RT, 2004, p. 175.
[4] Dentre outros, RE 1.009.816 AgR, ministro Roberto Barroso, DJe 12/06/2017.
[5] RESP nº 1.774.732, ministro Herman Benjamin, DJe 19/02/2018. Esse tema está afetado para julgamento na 1ª Seção: RESP´s ns. 1.767.631, 1.772.470 e 1.772.634.
[6] Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em regime repetitivo, que a confissão irretratável não impede a rediscussão de aspectos jurídicos da obrigação tributária (RESP nº 1.133.027, ministro Mauro Campbell Marques, DJe 13/10/2010).
[7] O disposto neste artigo não se aplica às sociedades cooperativas e às agroindústrias de piscicultura, carcinicultura, suinocultura e avicultura.
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